Capítulo 6 de A Educação Sentimental de Xavier Renart.
Na sala de Renart
Foi como se tivesse tomado um soco no estômago. E não foi o pior. Ao entrar na sala do professor Renart, Fernanda se deparou com o professor conversando com karine, que já havia levado Theo e Carol para, através de insistência e mostras dos trabalhos que já tinham realizados juntos, tentar inseri-los também na equipe do estágio na Maine Coon. Renart os ouvia olhando para sua mesa, como se buscasse maximizar o sentido da audição, deixando de lado os outros sentidos. Respondia mais para si mesmo que para os três à sua frente, ora um “Humm, tá”, ora um, “Não, não, tá bom” ou um "Hummm, bom, muito bom”. Ao que parecia, estava concordando com a entrada dos dois no estágio.
Ao que Fernanda entrou na sala ele estava já concordando. – Tá bom, por mim tá tudo bem. Só tenho que conversar com a Dorotheia antes, mas acho que não vai ser nenhum problema não. Ah, Fernanda! Gente, essa aqui é a Fernanda, ela foi a outra aprovada na seleção. Ela é do primeiro período. Bom que não tá contaminada com as idéias erradas de certas pessoas aqui na faculdade – disse isso sorrindo com um ar de brincadeira – e vai estar com a vocês no estágio. Fernanda. Esses são a Karine, que foi a outra aprovada, e o Theo e Carolina que devem participar do estágio também. Seu tom de voz era formal e relaxado ao mesmo tempo, e ficou meio que sem entender ao certo a cara de espanto de Fernanda. Achou que era cara de calouro.
Ao virarem para cumprimentá-la, houve um breve silêncio e uma cara de espanto por um breve momento logo mudada no olhar felino de Karine em direção a Fernanda, e do desviar o olhar para o outro lado com desdem de Carol. Theo foi o único que mudou para um expressão cordial. – Oi Fernanda, tá joia? Quem bom que você passou para o estágio também. O olhar felino de Karine se desviou para Theo e quase dava para escutar seu pensamento – “Também porque, você não passou”. O olhar de Carol também foi de ódio nesse momento, mas continuou em direção ao chão, para onde olhava desde que Fernanda tinha entrado. Renart que pegava uma cadeira para Fernanda só viu que essa engolia em seco, e não percebendo a reação dos outros, mas já sabendo do espirito de competição dentro da faculdade, atribuiu sua apreensão ao fato de estar junto com alunos do sétimo período. Renart colocou a cadeira do lado de Carol. Fernanda a puxou educadamante um pouco para trás. Se sentiu aliviada quando Renart começou a falar e os olhares que agora estavam todos voltados para ela se desviaram para o professor.
- Bom gente, estava já falando com o pessoal aqui Fernanda, o estágio é praticamente o seguinte. Temos algumas linhas de produtos que pretendemos desenvolver esse ano para aumentar a linha de acessórios da Maine Coon. Até agora, nós basicamente fazemos roupa masculina de alto padrão. Apesar de nossos ternos e costumes venderem satisfatoriamente, o nosso carro chefe são os artigos de couro, calçados, cintos, jaquetas, pastas e malas, que são os primeiros produtos que a Maine Coon desenvolveu. Temos produtos de outras empresas nas nossas lojas para complementar nosso portfólio, mas como queremos ser e consideramos que estamos conseguindo atingir um mercado mais exclusivo e de ponta, queremos produtos mais coerentes com os que já produzimos, com a mesma base estética e conceitual dos outros produtos. E essa experiência estética e conceitual se baseia principalmente na tradição, na respeitabiladade, e na distinção. E isso tudo baseado em fundamentos estéticos brasileiros. Os grandes cafeicultores do período imperial e republicano, os primeiros grande industriais paulistas, alguns senadores e diplomatas, do início do período republicano, fotos da família real assim que deixaram o Brasil, não de hoje, e de outras famílias reais que perderam as coroas são sempre exemplos interessantes. Mas a tudo isso temos que trazer também os elementos modernos de afirmação de uma identidade brasileira, com texturas, tecidos, cores... na prática é o seguinte, queremos que a pessoa tenha um visual formal, mas sem aparentar estar vestindo um uniforme de alto burocrata. E para fazer isso sem chamar tanto a atenção, nem fazer do alto burocrata estrangeiro um modelo do que não é um alto burocrata brasileiro, procuramos na moda brasileira, ou melhor, nas adaptações brasileiras da moda internacional, a referência principal para nossos produtos. Não queremos ensinar inglês para os ingleses, queremos falar português na cara deles, e se eles não entenderem, falar um inglês de bom nível como forma de permitir que participem de nossos desenvolvimentos. Bom, mas como eles ainda estão um bom nível a frente da gente, isso deve ser feito dentro de uma compreensão de que essa atitude parte de uma elite, que se coloca frente à elite deles em pé de igualdade, mas sem afetação... cordialmente, mas sabendo que possui elementos estéticos e civilizacionais que eles não possuem, e que remetem a um futuro mais promissor que o deles. Tá dando para me entender?
Fernanda reparava nas fotos antigas de fazendas de café e de um grupo de pessoas que se encaixavam na descrição que Renart fazia. Sua sala era decorada de maneira diferente dos móveis de escritório da maior parte das outras salas de professores que ela vira. Uma mesinha simples, de madeira com uma gaveta com puxadores também de mandeira, com um computador e uma multifuncional preto-foscos em cima, uma estante no mesmo formato, de móvel nem colonial nem com características dos móveis dos anos sessenta e setenta que ela tanto gostava da loja de João Celestino, que também era amigo de sua mãe e coordenador do curso de moda, que ela havia descoberto que fora o responsável pela mudança na perspectiva de sua mãe em relação ao curso, o que possibilitou que ela aceitasse que a filha fosse estudar na Allons. Pelo menos fez aquela suposição ali naquele momento. A voz de Renart a embalava e la prestava uma atenção difusa no que ele falava. Voltou a atenção para os móveis. Eram móveis simples mas mais antigos também. A cadeira de Renart, em contraste, era uma cadeira giratória preta com estruturas de aço, que privilegiavam a ergonomia, assim como as outras quatro cadeiras de aço pretas e com forros em um tecido sintético preto nas quais eles estavam sentados, e que compunham um jogo com uma mesa redonda pequena, no mesmo estilo de madeira marron escura mais antiga da mesinha de trabalho e da estante. Nas paredes fotos em preto e branco do que deveria ser a família de Renart, pela aparência da figura central, um senhor de mais idade com os mesmos traços suaves de Renart. As cores eram dadas sobretudo pelos livros e por três reproduções de quadros, A primavera de Monet, Ilas e as Ninfas de Waterhouse e o Nascimento de Venus, de Cabanel, nomes que ela também viera a descobrir posteriormente. Fora isso, alguns poucos pequenos objetos; três pequenos vasos vietnamitas azuis e duas pequenas estátuas de terracota de músicos pintadas em tons brancos e azuis, davam também um pouco de cor ao preto e branco reinante. Um pequeno vaso de cristal no alto da estante indicava que em algum momento Renart já havia pensado em colocar flores na sala. Mas apesar do ambiente mais sofisticado tudo aparentava formalidade. O próprio Renart se vestia de maneira formal. Estava com uma camisa de manga longa branca com pequenos detalhes de textura espinha de peixe, e um calça Marron escura, com sapatos e cintos marrons em um tom um pouco mais escuro que a calça. Reparou no relógio. Aço, redondo, de tamanho médio, mostrador branco com números pequendo em tons de prata, pulseira de couro marron com formato impresso de couro de jacaré, um tom um pouco mais claro que os marrons reinantes nos sapatos, no cinto na calça. Deveriam ser roupas da Maine Coon. Ela já tinha ido na loja com sua mãe, assim que soube da possibilidade do estágio. Conversara com a mãe a respeito e esta aproveitou a ocasião para irem a loja para levar a filha e também ver a linha de jóias deles. A mãe na verdade esperava encontrar com Dorotheia e falar sobre o desejo da filha de participar do estágio em sua empresa. Não a encontrou. Resolveu esperar para ver se a filha resolvia sozinha, depois esqueceu o fato, e só se lembrou quando a filha contou com seu tom de exultação extremamente contida que só ela e mais uma aluna tinham sido selecionadas. Achou a roupa de Renart um pouco menos formal que as que tinha visto. Pensou em como a leveza do professor, apesar de sua formalidade, davam um toque mais descontraido à roupa. Olhou então para si mesma, de jeans, blusinha branca de renda e casaquinho e tenis de pano rosa. Se sentiu deslocada no ambiente e na conversa. Reparou nas roupas de seus colegas. Theo com jeans, blusa branca com um desenho verde e azul de uma flor nas costas e detalhes florais em uma das mangas. Tênis de corrida branco e prata e uma pulserinha de pano salmão desbotada amarrada no pulso direito. Carol com um vestido leve lilás e roxo, com um casaquinho jeans azul por cima, com estilo meio gótica ressaltada por seu cabelo preto e vermelho e pelo piercing dourado com um cristal no nariz. Uma pulserinha cheia de pingentes coloridos de figas, olhos gregos e pimentas. Usava também uma correntinha com um pingente em forma de coração, ambos de ouro, e que parecia um pouco discrepante do resto da roupa, mas dava um toque de feminilidade e romantismo ao conjunto, da mesma forma que a rasteirinha lilás com detalhes dourados. Karine estava com uma bermuda jeans azul larga e desfiada na bainha com detalhes dourados, e uma blusa branca com detalhes também dourados, que ficavam mais ressaltados com sua pele morena, que parecia bastante queimada de sol, apesar de lisa e sedosa. Usava também tênnis de pano da mesma marca que o seu, só que coloridos, em tons predominantes de vermelho e amarelo. Só usava uma pulseira dourada, com detalhes também dourados. Ia reparar se usava colares e brincos, mas encontrou o olhar de Karine, que percebia com desdém que ela reparava em suas roupas. O olhar felino já tinha desaparecido. Olhou para Fernanda como quem pega no flagra com um leve tom de desaprovação, e voltou o olhar para Renart que continuava explicando o modelo conceitual e estético que pretendia imprimir em sua nova linha de produtos. Fernanda engoliu em seco mais uma vez e voltou sua atenção para Renart também.
Basicamente, Renart pretendia desenvolver uma linha de acessórios, como relógios, canetas, chaveiros, abotuaduras, prendedores de gravatas, porta cartões, e tudo que pudesse servir como jóias sem ser uma jóia propriamente dita.
- ... e se der, pretendemos começar também uma linha de perfume e de loções e cremes pós barba e sabonetes. Mas isso ainda é mais para frente. Essa seria uma área muito fora da nossa especialidade. Provavelmente a fariamos em parceria com alguma outra empresa que já faz esses produtos, mas com características exclusivas para nós. Mas vocês podem ir pensando nisso também. Bom, é basicamente isso. A última coisa é a forma de trabalho. Temos duas perspectivas com as quais trabalhamos aqui. É o que chamamos de divisão de gênero no trabalho. Apesar de trabalharmos com moda masculina, a percepção feminina é sempre importante também. Temos duas perspectivas. Uma é demontrar poder, e isso para ambientes de trabalho ou para relações de disputa, mas também temos que apresentar um sex appeal em nossos produtos que remetam a algo mais que o poder, a tradição, a respeitabilidade e a distinção. Temos que dar uma leveza, descolamento, agilidade, modernidade e romantismo aos produtos. E isso é função de vocês que são jovens trazer para a marca. Vocês vão trabalhar sob a supervisão dos outros dois estagiários do nono período e dos outros dois designer já formados, que também estudaram aqui e formaram ano passado e que contratamos. Além disso temos o Adriano que é quem cuida de toda parte administrativa, eu, a professora Dorotheia e o professor Tomaz, que somos os donos da Maine Coon. O resto é tudo terceirizado. Além de trabalhar no desenvolvimento dos desenhos das peças, vocês também vão ter que procurar preços dos produtos, fornecedores, fazer prospecção de mercados, e um monte de outras coisas que parecem ser bobagens administrativas, mas que são fundamentais o designer conhecer para poder fazer um bom trabalho. É a base material para que seu trabalho possa se tornar realidade. E isso vai ser fácil porque tem tudo que vocês precisam aprender nessas apostilas aqui. – Renart se levantou e foi até sua mesa de trabalho de onde retirou da gaveta cinco grandes apostilas que colocou em cima da mesa onde os alunos estavam sentados. – É só vocês xerocarem e trazerem de volta para mim ainda hoje. E quero isso lido em duas semanas quando vamos fazer a reunião da equipe toda. Até lá vamos fazer o seguinte. Hoje é segunda feira. Na quarta às 17h vamos nos encontrar na Loja da Maine Coon no BH, pode ser para todos?... Então tá. Depois a gente vai na sexta a tarde, que vocês estão mais liberados de aulas, conhecer alguns dos nossos fornecedores. Podemos no encontrar aqui na faculdade duas da tarde? Daqui a gente faz um reunião breve com a Dorothéia e com o Tomaz para vocês os conhecerem e depois a gente sai para conhecer alguns fornecedores. Certo?... Bom, como estava no edital do estágio, os primeiros seis meses são de estágio não remunerado. Só no segundo semestre é que, caso vocês se mantenham no estágio, passará a ser remunerado. Todos os estagios são assim aqui na faculdade. Vocês devem considerar isso como um processo de seleção expandido. Vocês já passaram por experiências parecidas. Só a Fernanda que está começando ainda não conhece o esquema. Mas posso adiantar que como estamos expandindo, temos a expectativa que todos vocês continuem no estágio. Bom, o estágio é de no máximo dois anos. Aqui exigimos exclusividade, como colocamos no edital. Vocês estão cientes disso né. Estão em algum outro estágio?... Bom, então é isso. A remuneração será de dois salários se vocês passarem, e até lá as despesas com viagens e visitas técnicas que forem necessárias, ou cursos extras, serão pagos pela Maine Coon. Ok? Alguma dúvida?... Não? Então tá, quem vai ficar responsável pelas apostilas? – Carol se prontificou e pegou as apostilas. – Tá, dá para trazer elas aqui até o final da tarde? Qualquer coisa fala que é para mim lá no xerox que eles passam na frente e te devolvem antes. Vou estar aqui na minha sala até as seis. Entre cinco e seis é o melhor horário – Carol confirmou com um aceno de cabeça. – Então tá bom gente, até quarta, vão pesquisando os modelos de moda masculina histórica que eu falei com vocês para irem constituindo um repertório de imagens dos termos. Até quarta então lá na loja. Abração.
Renart se levantou para despedir deles, mas não os acompanhou até a porta da sala. Talvez porque essa fosse pequena o suficiente para não poder se despedir deles dali mesmo e enquanto eles saiam se encaminhou para sua mesa de trabalho. Carol quebrou o gelo e se dirigiu a Fernanda.
- Vamos lá tentar tirar o xerox agora?
- Vamos
O tom de voz de Carol era formal, mas não tinha mais o olhar maldoso e agressivo de antes, só de distancia. Fernanda seguiu um pouco atraz do grupo que lhe pareceu bastante coeso. Carol não havia perguntado para os outros dois se iam tirar o xerox também. Era como se já funcionassem sem necessidade de conversa. Aliás não conversaram enquanto se caminhavam. Ela sabia que era por causa da presença dela ali, uma estranha no grupo. Além do que, ela tinha ficado com o namorado de Carol. Não era a toa que ela estava com raiva. Sentiu uma pontada de orgulho, mas não ousou expressar isso com um sorriso. Só seguia calada ao grupo. Na sala da copiadora Carol mais uma vez tomou a iniciativa.
- Oi, a gente precisa xerocar essas apostilas, mas preciso entregar elas até o fim da tarde, são para o professor Renart.
- Ah, pode deixar, tá tranquilo aqui hoje. Olha, são onze e meia. Vocês podem pegar aqui depois do almoço, tipo umas duas da tarde.
- Ah tá. E quanto fica.
- Peraí – a antendente da fotocopiadora olhou o número de páginas das apostilas e se voltou para Carol – É com encadernação?
- Sim – Carol respondeu sem consultar Fernanda. - Quatro cópias de cada uma.
- Fica em quarenta reais então para cada um. Pode pagar quando pegar.
- Tá bom então.
Sairam da fotocopiadora e Carol, mantendo o tom de voz formal e de maneira calma mas bastante firme falou com Fernanda.
- Fernanda, a gente vai almoçar e vai voltar aqui às duas para pegar as apostilas. Você vai vir aqui às duas mesmo ou vai deixar para vir depois?
- Uai, posso voltar às duas mesmo.
Carol ficou um pouco irritada com a ingenuidade de Fernanda. – Então, tá, qualquer coisa a gente se encontra aqui então. Se não a gente se encontra na loja quarta feira.
- Tá.
Carol e Karine sairam sem maiores despedidas. Theo esboçou que ia dar um abraço em Fernanda, mas ia sendo puxado por Carol, e só acenou com a mão. Fernanda ficou ali parada enquanto o grupo se distanciava. Quando estava já fora do campo visual de Fernanda, Karine soltou.
- Nossa Theo, que ódio de você viu.
- Deixa que a gente conversa isso fora da faculdade enquanto a gente tiver conversando Karine. A gente vai ter que ter uma conversinha mais longa com nosso namoradinho aqui.
Theo, para variar continuava calado
- Não acredito que você ia dar três beijos para despedir dela. È muita cara de pau. – Karine agora estava com uma cara transtornada de tanto ódio.
- Pior Karine, é que ia. Vamos deixar para conversar no restaurante. Carol também estava com uma cara transtornada de ódio.
Já estavam aconstumados a passar pelos colegas da faculdade que também iam saindo para o almoço sem cumprimentá-los e sem se dar conta da existência dos mesmos. Agiam da mesma forma de sempre, só que de maneira mais forte dessa vez, mais isolados. Foram até o carro de Karine no estacionamento e de lá para um restaurante longe da faculdade bem amplo e aberto, onde sabiam que não iam encontrar ninguém e poderiam conversar com privacidade. Mataram as aulas da tarde e só voltaram às quatro, quando sabiam que os alunos do primeiro período estavam em aula. Pegaram as apostilas e deixaram a original na sala de Renart. Foram para o apartamento de Carol e Karine, e a conversa durou o resto do dia, até o jantar. Depois Theo seguiu abatido para sua casa. Carol e Karine deram uma olhada nas apostilas e resolveram deixar começar seu estudo para depois. Viram um filme juntas caladas. Carol dormiu rápido, abraçada por Karine. Esta demorou um pouco mais. Não conseguia tirar da cabeça que, agora, ainda que contra sua vontade, havia uma pessoa nova no seu grupo.