FELICIDADE SE CONSTROI

(Continuação de O VELÓRIO)

No dia seguinte ao enterro de Zé Paixão, logo cedo, correu a notícia de que Galego do sorvete tinha se apresentado na delegacia para prestar depoimento.

O delegado mandou chamar o advogado de ofício que estava hospedado na pousada Canto da Serra e depois de tomado o depoimento o advogado achou melhor o criminoso ficar detido, até ser transferido para o presídio, para evitar a possibilidade de alguém resolver vingar a morte de Zé Paixão, porque o defunto era muito querido e ninguém pode garantir o que um cabra embriagado é capaz de fazer.

No depoimento Galego do sorvete reconheceu a autoria do crime e se defendeu dizendo que agira levado pela fúria, que não tinha nada contra a vítima, mas que ao ter a honra ofendida, perdeu a cabeça e cego de ira, cometera o crime que agora tinha transformado sua vida num inferno.

Na casa de Zé Borges, tinha-se o costume de tirar uma soneca depois do almoço, mas nesse dia ninguém foi dormir porque Maria Galega mandou avisar que iria lá falar com as moças logo depois do almoço.

Ainda estavam sentados na sala de jantar quando ela chegou arrastando Serginho (abraçado com um caminhãozinho de madeira sem rodas) e na outra mão, carregando a malinha amarela, de madeira, cujos fechos de metal estavam a reclamar por substitutos, contendo toda roupa do menino.

Sentados na sala de visitas, ouviram toda a história do nascimento de Serginho, leram as cartas onde Zé Paixão se comprometia em criar o menino que, reparando direitinho era cagado e cuspido o finado.

Além do cabelo escuro, do nariz, do jeito de olhar e de falar, ainda tinha o sinal preto, como um ponto final, no meio da bochecha, abaixo do olho direito.

Mesmo que se quisesse negar a paternidade, não tinha como.

No final de contas o que Maria Galega queria era se livrar do menino, principalmente agora com Galego do sorvete preso, e que deveria ser condenado, ela iria embora para a casa dos pais dela. Os dois filhos maiores já podiam se virar sozinhos, mas Serginho precisava de uma mãe que ela não podia e nem queria ser.

- Então nós vamos agora mesmo ao Juizado, que é para a senhora fazer uma escritura de doação do menino. Tá certo? (e para as moças, dona Antonia perguntou) Vocês, o que dizem?

- É meu irmão! Eu fico com ele. (Disse Maria do Céu e as outras concordaram com gestos de cabeça) Se Antenor não quiser...

- Por mim está tudo certo. Vamos criá-lo como se fosse nosso filho. (disse Antenor)

Nesses últimos dias de muitas emoções e de decisões difíceis, os dois tinham descoberto o amor recôndito que um sempre sentira pelo outro.

Nesse mesmo dia, com a escritura de doação em punho, Maria do Céu, com Serginho no colo disse:

- De hoje em diante, sua mãe sou eu. Até que você cresça, que vire um homem de verdade, tudo o que acontecer com você eu preciso saber para poder resolver. Os seus outros pais foram fazer uma viagem muito longa, talvez nem voltem mais, por isso tudo, tudo mesmo, terá que ser comigo. Você entendeu meu filho?

- Intindi mamãe!

Na noite seguinte Flávio chegou com uma novidade que só poderia ser mostrada depois do jantar.

Durante todo dia ele tinha desenhado o plano para dividir o sítio em quatro partes iguais.

Em três seriam construídas as casas deles e a quarta parte, de Serginho, ficaria sendo usada como capineira até que o menino tivesse idade para decidir o que fazer com ela.

As casas seriam construídas nos cantos, distantes umas das outras, de forma que o terreno ficaria dividido apenas com o mourão indicativo do meio, sem cerca dividindo os lotes. Fátima disse:

- Eu acho que devemos construir as casas no centro do terreno, cada uma olhando para um canto, como uma cruz, com um terraço bem grande no centro unindo as casas. E onde era para ser a casa de Serginho se constrói um galpão para guardar ferramenta, colheita, criação, qualquer coisa...

------------------------------------------------------------------

Alguns meses depois, as construções estavam bem adiantadas.

Lourdes e Fátima continuavam morando na casa de Zé Borges, conforme o desejo de dona Antonia. Do Céu e Antenor decidiram morar juntos na casa da Rua Dois e levaram Serginho com eles.

Serginho era um menino manso, fácil de criar e era o elo que faltava para atar a vida dos dois adultos, que agora eram chamados de papai e mamãe.

Atendendo ao pedido da mulher, Antenor contratou dona Florinda, a professora do Grupo Escolar, para a noite dar aulas às três irmãs que nunca tinham frequentado uma escola, mas pelo interesse e dedicação em pouco tempo já estavam lendo até jornal.

Durante o dia todo Lourdes ajudava a sogra nos serviços da casa e Flavia, depois do almoço, ia para a loja, para que o sogro, adoentado, pudesse ficar em casa.

Flavia tinha tino comercial e, despachando no balcão, jamais deixava um cliente sair com a mão abanando.

Depois de um final de semana de muita atividade, finalmente, Antenor e Serginho conseguiram colocar rodas novas no caminhãozinho.

O chão da varanda, apesar dos esforços dos dois, não ficou limpo como Do Céu queria e, enquanto ela fazia a faxina, os dois, abraçados, eram ameaçados de morte se da próxima vez que se juntassem para fazer alguma coisa, deixassem a varanda daquele jeito.

Assim, entre cochichos e risadas em surdina, pai e filho combinaram que a pintura nova do caminhão seria na varanda da casa de vó Toinha, que era mais mansa que mamãe e tinham as tias Lú e Fá para ajudar na limpeza.

Os casamentos seriam realizados quando as casas estivessem prontas e, apesar da língua ferina do povo que dizia que as filhas de Zé Paixão, não tinham esperado nem o cadáver do pai esfriar na cova para se amigarem com os filhos de Zé Borges, a família vivia feliz, com o arranjo construído por dona Antonia, que todo dia rezava pedindo que lhe nascessem muitos netos, lindos e saudáveis, para fazer companhia a

Serginho (seu neto do coração) e encherem aquela casa que brilhava, mesmo no escuro, por causa da alegria de viver dos seus moradores.