O VELÓRIO

(Continuação de BRIGA DE GALO)

Dr. Marcílio examinou o cadáver de Zé Paixão e deu-lhe o atestado de óbito. Causa da morte, hemorragia em decorrência de severos ferimentos nas vísceras abdominais, produzidos por objeto cortante. Faca peixeira de oito polegadas. O caso foi registrado na delegacia de polícia e o corpo liberado para o sepultamento.

Como o falecido não possuía casa, porque havia caído com a chuva, e até a data todas as tentativas de reconstrução haviam terminado em bebedeiras homéricas; como faltava dinheiro para alugar o salão paroquial e como o cemitério não dispunha de local próprio, o velório se deu na rinha de briga de galo de Romildo, onde o crime havia sido praticado.

Muita gente disse que era um absurdo que o compadre Zé Borges não tivesse aberto a casa dele para a cerimônia, mas foram as filhas do finado que não quiseram que o velório acontecesse lá.

Nestor da funerária deu o caixão, dizendo que era presente do seu filho, que era afilhado do finado, e porque estava estudando na capital, não podia comparecer ao enterro do padrinho.

Dona Antonia deu um terno de Zé Borges que ele não usava mais, para vestir o defunto.

Romildo trouxe os apetrechos, fez a barba e penteou o cabelo de Zé Paixão que, apesar de estar mais branco do que a cera do santíssimo, até que ficou bonitinho com o bigode aparado e o sinal preto, que parecia um ponto final, no meio da bochecha papudinha.

Solitários ou em pequenos grupos, os amigos e companheiros de bebedeiras foram chegando e formando as rodinhas de conversas.

Romildo disse que em homenagem ao amigo morto, à meia noite, iria servir uma rodada de aguardente para todos, mas que era só uma lapada, tanto que ele iria usar um só copo, daqueles de vidro do fundo grosso.

Apesar da indignação inicial por conta do local escolhido para o velório, todos concordaram que era o único local com capacidade para abrigar a todos com conforto, onde toda aquela gente poderia se sentar, sendo local ventilado e muito bem iluminado.

Márcio Meiota chegou bebo como um gambá, e segurando na beira do caixão para não cair, entre lágrimas, disse com a voz pastosa:

- Meu amigo Zé Paixão, qualquer dia desse nóis vai se incrontá no céu prá tomar uma cana de torá.

Home bom que nem tu, meu cumpadi, o cabra num acha na rua feito quem acha cocô de cachorro não.

Eu queria sabê fazê um discurso do bom, daqueles de deputado. Não, de deputado não que é tudo uns féla da puta e puta, aqui perto, só tem Maria Galega que agora fico viúva duas vez.

Do corno brabo que fugiu e de tu, meu cumpadi, que cumeu munto aquela ramêra safada.

Antes que a coisa degringolasse para confusão, Betel saiu do último degrau da arquibancada da rinha e veio tirar Márcio Meiota de junto do defunto.

- Cala essa boca rapaz! Respeita a família do morto.

Enquanto estava sendo levado para longe do caixão, Márcio falava bem alto para que todo mundo ouvisse.

- As meninas de cumpadi, carece de sabê que aquele galego menorzinho é irmão delas. É filho do meu cumpadi aqui.

Cabra munto macho que embuchou a mulé do sorvetêro e o corno nem desconfia...

Expedita trouxe um vidro de Seiva de Alfazema e aspergiu no morto e pelos cantos da rinha, explicando com o sorriso desdentado, que era para tirar a inhaca de pena molhada que vivia entranhada naquele ambiente, que mais parecia um circo.

Durante todo o velório, Maria do Céu permaneceu abraçada ao noivo, só levantando a cabeça do seu ombro para receber os cumprimentos de pessoas que ela, muitas vezes, nunca tinha visto.

Fátima pediu a dona Antonia para ficar em casa.

Ela só iria para o enterro que estava marcado para as dez horas do dia seguinte.

- Eu fico com ela, mãe.

E diante do olhar de reprovação de dona Antonia, Fátima disse:

- A gente vai ficar na sala, madrinha.

- Veja lá o que vocês vão fazer...

- Ôxe mãe! A gente só tem cabeça para rezar.

- É. Mas depois da reza tem choro e tem consolo. Eu não nasci hoje não.

Zezinho e Lourdes chegaram da rua.

- Madrinha eu vim para ficar com Fátima. Eu não quero ficar ali não.

As irmãs se abraçaram chorando.

- Mãe, a senhora quer que eu lhe leve lá de carro?

- Não. Eu vou andando com comadre Mocinha. Olhe ela chegando aí. Peraí comadre, que eu vou pegar o terço e o véu.

No silêncio que se seguiu a saída da dona Antonia, os quatro jovens na sala, o sono fez com que Fátima deitasse a cabeça no peito musculoso de Flávio que também adormeceu no sofá de três lugares.

- Você quer um café meu amor?

- Quero sim. Eu fico aqui na sala.

Lourdes foi para a cozinha. Passado algum tempo, Zezinho ouviu um grito e o som de alguém caindo. Correu para a cozinha. Lourdes estava desmaiada no chão. Voltou correndo para a sala e acordou o irmão.

- Vinho, acode aqui. Lourdes está desmaiada no chão da cozinha.

Já na poltrona, depois de ter cheirado álcool canforado, Lourdes acordou e contou com a voz embargada pelo choro.

- Eu vi mãe sentada na cadeira da cozinha e pai junto do fogão me dizendo que Serginho é nosso irmão, e quer que a gente tome de conta dele.

- Mas Serginho é filho de Maria Galega e do marido dela.

- Não é não. Pai disse que é filho dele, que é nosso irmão. Repare como ele é diferente dos outros. É o único da casa que tem cabelo escuro.

- Tá certo. Depois a gente vê isso.

Na manhã seguinte, no cortejo até o cemitério, nunca se tinha visto tanta gente junta.

Todos os que estiveram no velório, mais os que não haviam comparecido, estavam no cemitério.

Maria Galega compareceu vestida de luto e levou Serginho, menino de menos de cinco anos para assistir. Ficou afastada das filhas do morto, em sinal de respeito.

Quando começaram a jogar as pás de terra sobre o caixão, Aluísio teve uma crise de choro e queria se sacudir dentro da cova para ser enterrado com o amigo.

Foi agarrado pelos outros bêbados e retirado dali.

No caminho de volta, Maria Galega se aproximou das filhas do finado e disse que precisava muito falar com elas.

(Continua em FELICIDADE SE CONSTROI)