Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. I)
“MACÁRIO — Esta cidade deveria ter o teu nome.
SATÃ — Tem o de um santo; é quase o mesmo. Não é o hábito que faz o monge. De mais, essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma vila e pobre como uma aldeia.”
(Álvares de Azevedo, MACÁRIO)
“Prince, n’enquerez de sepmaine
Où elles sont, ne de cest an,
Qu’à ce refrain ne vous remaine:
Mais où sont les neiges d’antan?”
(VILLON)
“I wish I only had that heart
I trod upon ages ago!”
(ELIZABETH BARRETT BROWNING)
O princípio do nihil admirari esteve gravado quase que de forma pétrea em meu coração por anos – entretanto, tendo em vista minha idade ainda tão tenra, não sei dizer se isto é algo bom ou ruim. Ter 27 anos e proclamar com a mesma certeza que o sábio rei exprimiu ao escrever no Livro de Eclesiastes que “tudo é vaidade” seria algo um tanto quanto preocupante a quem o ouvisse assim, de forma tão direta, mas seja pela influência de minha má estrela ou porque eu próprio busquei fazê-lo – naqueles desvairados tempos de minha juventude, no qual a inspiração poética se misturava à busca desenfreada por emoções e sensações – deixei de me interessar pelas coisas por tê-las visto de mais, e não de menos. A estrada do excesso levou William Blake à sabedoria, e a mim à apatia.
Vi aqueles a quem amei sendo levados de mim à força por Azrael, que cruelmente deixou-me para trás a fim de pranteá-los até que meus próprios dias se acabassem; vi vários de meus conterrâneos prostituírem seus valores e sua dignidade com o intuito de registrarem seus nomes nos efêmeros memoriais da volúvel Fama; vi, na embriaguez do lupanar, espantosas alucinações repletas de espectros, rubros demônios e cárceres que nem Piranesi conseguiria imaginar, em toda a tortuosidade de seu gênio, pressagiando o castigo que me estava destinado por ter-me afastado do caminho dos íntegros; e vi cidades, muitas delas.
Por muito tempo só pude viajar à roda de meu quarto, feito De Maistre, por ser o único itinerário permitido por minhas finanças; mas, tendo obtido uma considerável soma de dinheiro e algum prestígio após imiscuir-me no mundo das letras (uma de minhas maiores ambições desde que as Musas aceitaram-me em seu convívio) com uma noveleta que não foi pior recepcionada talvez por dó – escrevi-a nos mais verdes anos de minha juventude, com a tinta do mais puro idealismo romântico de meu coração ainda impoluto; quem ousaria destruir as esperanças de uma criança, afinal? – e que, em anos posteriores, só viria a me trazer uma procissão de embaraços, resolvi seguir aquele conselho que tantas vezes me foi repetido: “Viajar é o melhor remédio para o spleen!”.
E assim parti eu, tal qual Childe Harold não deixando quase nada ou ninguém de valor para trás, almejando voltar à minha pátria mais sábio e um pouco menos triste. Que retornei mais sábio não o nego; mas sentia-me ainda mais pesaroso do que quando havia partido.
Contemplei a deprimente decadência de Kishinev e as ruínas de Tskaltubo; às margens do rio Kura, em Tiflis, após um derradeiro beijo de amor, despedi-me de Zarema para nunca mais reencontrá-la; curvei-me à glória da Torre de Gediminas em Vilnius, e em Kaliningrado hospedei-me na morada do último herdeiro da família —. Andei pelos Fens ingleses sob a companhia da Lua e dos gélidos ventos invernais, e visitei cada um dos sete castelos do rei da Boêmia, todos idênticos em sua incomparável opulência – mas uma voz interior não parava de repetir-me que em meu próprio país poderia eu ver pessoas, construções e monumentos, e que o mundo todo se resume a isto.
Por consequência, realizei todas as minhas viagens feito um autômato, assimilando mas não desfrutando das paisagens que via e de qualquer outra forma de diversão que, em outros tempos, me pudesse ser agradável – e lembrei-me de Aleko no poema de Pushkin, constatando tal como ele que não se pode fugir do spleen se ele é carregado dentro de si, em seu coração, a todo momento.
[Continua no Cap. II]