Liselotte e Tediato (Cap. VIII)
A tarde estava encantadora; o Sol começava a ocultar-se sob as montanhas no horizonte, e nuvens cor de fogo boiavam preguiçosamente no róseo céu crepuscular. Uma semana havia se passado desde sua visita ao rei, e Liselotte seguia de volta ao castelo para cumprir o acordo que ela e Maximiliano haviam travado.
Sendo ela uma dama (e é sabido que toda dama deve ser versada nas artes da costura), confeccionara para si uma adorável roupa listrada, amarela e vermelha com bufantes mangas brancas, calções negros e um chapéu arredondado da mesma cor, com longas abas. Como os guardas lhe haviam instruído que o príncipe passava quase o dia todo trancado no quarto e gostava de sair para passear nos jardins quando o Sol começava a se pôr, lá ficando até que a Lua despontasse, ela quis que seu encontro se desse num lugar onde não pudesse violar involuntariamente as intimidades de Tediato – além do mais, sempre ouvira falar do fabuloso jardim que Maximiliano mandara planificar, e queria vê-lo de perto.
O jardim, que se situava nos fundos das muralhas do castelo, fora a construção mais decepcionante que Liselotte contemplara em toda a sua vida.
Não por ter um tamanho canhestro (era extensíssimo), e tampouco por ser desprovido de beleza, pois fora planejado com muito requinte e gosto; todas as flores e plantas, porém, eram artificiais, tendo sido lavradas com diversas pedras e metais preciosos. Tal constatação veio a lhe azedar o humor significativamente, mas como já estava habituada a se desapontar não deixou que isto lhe pesasse na alma por muito tempo.
Após explorar por alguns instantes aquela emulação de jardim, deparou-se com o príncipe melancolicamente sentado num banco de mármore ricamente talhado, olhando o céu.
“Posso sentar-me contigo?”, perguntou ela depois de saudá-lo.
“Trovadora Liselotte”, respondeu ele, afastando-se a fim de compartilhar seu assento com a garota. “Já li a todos os antigos trabalhos de teu falecido pai, e os aprecio bastante, porém prefiro a solenidade de teus poemas. Por que te incumbistes de salvar-me contra a minha vontade, de uma morte a que eu próprio hei buscado?”
“Pois gostaria de esclarecer as trevas desta tua nebulosa mente, meu penseroso Aldo… Mas nada sei sobre as ciências, ao contrário do sábio Acroceronius – minha função é cantar sobre as obras de Deus, não tentar compreendê-las. Posso, porém, ensinar-te a viver. Não espero que me concedas o mesmo amor que tinhas por Loriolo, mas cá venho para prestar-lhe meus tributos em respeito à vossa amizade. Por sinal, se vendêsseis este jardim, nunca mais reclamariam de carestia em todo o reino…!”
“Meu pai mandou construí-lo a mim”, respondeu Tediato. “Houve um tempo em que queria muito sair do castelo para passear a sós, pois nunca vira a natureza de perto – ele então me disse que este seria um simulacro bom o bastante e que devia parar de reclamar. Por algum tempo de fato serviu aos meus propósitos – mas faz parte da natureza humana ansiar pelo inalcançável…”
“E por isto fugiste de casa?”
“Sim.”
“E o que achaste do mundo fora do castelo, tendo habitado nele por cinco dias? O que viste espantou-lhe tanto a ponto de tentares suicídio para apagá-lo das memórias?”
Tediato suspirou, e após contar em detalhes sua história (com a qual o leitor atento já está familiarizado) explicou-lhe pormenorizadamente as circunstâncias de sua fuga.
A vida em meio àquelas paredes havia se tornado particularmente insuportável após a morte de seu amigo – assim sendo, almejando abdicar de seu direito real, fugira a fim de viver disfarçado como um plebeu pelo resto de seus anos. Perambulando pelas ruas em busca de serviços durante o dia, e dormindo ao relento à noite, presenciara as mais vibrantes cenas da estultícia e vaidade humanas desfilando ante seus olhos – em meio à nobreza ou em meio à plebe, sempre estaria fadado a conviver com a artificialidade de todas as coisas; tal perspectiva fez com que obtivesse um frasco com folhas de beladona com algum dinheiro que trouxera do castelo (e que já começara a ficar escasso depois de cinco dias, não obtendo quaisquer serviços por mais que procurasse), e seguisse a um lugar isolado onde pudesse tirar a própria vida sem que fosse interrompido.
Liselotte conhecia bem aquela inquietação que se apossara da alma de Tediato… Se não fosse por senti-la, não teria buscado sua consolação nas artes poéticas.
“Meu príncipe, meu príncipe…”, disse ela com carinho, segurando-lhe uma das mãos. “Parece-me que aprendeste da pior maneira que a existência humana é uma tragédia aonde quer que vás! Estejas em meio aos confortos que apenas um nascimento em meio ao sangue azul pode oferecer, ou arando os cardos da terra para que possas comer teu pão com o suor a pingar-lhe do rosto – totus mundus agit histrionem! Que esperas do milenar legado de uma espécie que, por uma mísera maçã, abandonou um estado de bênçãos eternas junto ao seio do Pai? Mas gostaria de dizer-te algo… Vês este meu traje de bobo da corte? Sabes por que tanto eu quanto Loriolo o envergamos? Pois cremos que toda tragédia não devia ser poupada de um alívio cômico. Nossa existência é vapor; a morte é a única coisa verdadeira a permear o vertiginoso sonho da vida. Portanto, o que nos resta é sermos como os bobos, meu príncipe, e rirmos dos caprichos deste sonho.”
“Falaste lindamente, Liselotte… Mas, como vês, nunca soube ser feito um bobo – por isso a presença de Loriolo era-me essencial.”
“Cá estou com a única finalidade de ensinar-te”, respondeu a garota, colocando seu chapéu de um jeito brincalhão sobre a cabeça do príncipe. “Enquanto me permitires que venha ver-te, serei tua amiga, e juntos compartilharemos os pesares de nossas almas – e deles riremos. Apenas não posso morar permanentemente no castelo; sou tão livre quanto o fluxo de um verso, e não posso ser mantida num único lugar. Além do mais, tenho minha própria casa, e dela gosto muito.”
Após pensar por alguns segundos, Tediato tirou de seu pescoço um cordão contendo uma chave amarrada à sua ponta, tão disfarçadamente oculto sob suas vestes que Liselotte não o pudera perceber à primeira vista.
“Esta chave”, começou ele, estendendo-a à garota, “abre uma portinhola aos fundos do jardim, que leva a uma saída secreta do castelo: depois de obtê-la a muito custo, foi dela que vali-me para auxiliar minha fuga. Durante o dia serás a trovadora Liselotte, mas quando a noite cair – tal como agora – se tornarás a boba Liselotte, e usarás a chave para vir ver-me. Pareces-te um bom plano?”
“Um melhor não haveria, meu príncipe”, respondeu ela, apanhando o cordão e amarrando-o a seu próprio pescoço.
“Ótimo! Pois bem… Por ora não queres contemplar a Lua comigo, que já começa a surgir em meio ao céu do anoitecer? Loriolo dizia ter vindo de lá… Tantas histórias bonitas sobre a Lua me contava…!”
E os dois passaram a noite toda conversando, de mãos dadas, observando a Lua – que, depois da profunda amizade que havia se formado entre eles, era a única coisa autêntica em meio àquele jardim.
Quando vieram a se despedir mais tarde, o príncipe Tediato não conseguia lembrar-se da última vez que sentira tamanha felicidade, e nutrira tantas esperanças para o porvir, em toda a sua vida.
E quanto a Liselotte… Pela primeira vez em anos a ironia não vinha a deformar-lhe o sorriso…
[Continua no Cap. IX]