Liselotte e Tediato (Cap. VII)

Com Tediato em seus braços, Liselotte irrompeu pelos portões do imenso castelo real mal os guardas permitiram sua entrada, estupefatos por aquela ser a primeiríssima vez que avistavam a trovadora, geralmente tão adversa à opulência e ao bulício das partes mais nobres da corte, agora indo a seu encontro – e mais ainda por ela carregar o príncipe pelo qual tanto procuraram sem obter qualquer êxito.

“Alguém chame o médico real!”, gritou ela avançando pelos extensos corredores, com dois pares de guardas em seu encalço a fim de alertarem o rei de sua presença. “O príncipe herdeiro ingeriu beladona e pode morrer se algo não for feito!”

Dois dos quatro saíram à procura do médico, e Liselotte adentrou a sala do trono, onde o rei Maximiliano sentava-se, trajado na púrpura real e ostentando a magnífica coroa dos monarcas da Boêmia, acompanhando com os olhos uma aranha arrastando-se por uma vetusta e empoeirada tapeçaria.

“Vossa súdita Liselotte, conhecida como ‘a trovadora’, comparece ao castelo, Vossa Majestade”, um dos guardas anunciou. “E traz consigo o príncipe herdeiro.”

Com mais de meio século de idade, os dias de glória de Maximiliano se esvaíam lentamente. Outrora um esbelto e atlético mancebo de volumosos cabelos negros e traços faciais firmes e viris, com o passar do tempo seu cabelo começara a rarear, formando quase uma tonsura no topo de sua cabeça. Tendo engordado consideravelmente desde que assumira o trono e sendo acometido por vários problemas de saúde, há muito o rei não podia se dedicar a seus esportes preferidos, o que fizera com que seu humor, colérico por natureza, azedasse a cada ano. Isto somado à sua predisposição para fazer gracejos um tanto quanto inoportunos, e à sua gritante falta de sensibilidade e cultura (os únicos livros que gostava de ler eram manuais de falcoaria, equitação e esgrima), fazia com que o rei recebesse a alcunha de antipático por quem quer que o conhecesse.

Maximiliano, porém, não era um mau líder; amava o seu país e tinha muito orgulho de seus ancestrais – apesar de ambos serem contaminados por seus próprios preconceitos pessoais até certo ponto –, mas não percebia que sua adoração excessiva pelos protocolos da Coroa o alienavam da família – incapaz de lidar com a frigidez do homem (particularmente a partir dos anos subsequentes ao nascimento de Tediato), a rainha, Teresa, se separara dele e contraíra segundas núpcias com um fleumático e cordial príncipe de Mântua a quem conhecera quando este passou pela Boêmia em seu Grand Tour, e o acompanhou de volta a seu principado.

“Encontrei o príncipe desmaiado após ingerir beladona, Vossa Majestade”, Liselotte começara a se explicar. “Pedi para que trouxessem…”

“Não me importo com os pormenores”, interrompeu-lhe o rei, ainda observando a pequena aranha na tapeçaria como se nunca houvesse visto tal criatura em toda a sua existência e, portanto, a presença de uma em seus domínios lhe fosse um fenômeno impregnado de extrema peculiaridade. “Meu filho é um poltrão que fugiu, perdeu-se e foi achado; é o suficiente.”

Nisto, os dois outros guardas retornaram na presença do médico real – um senhor de penetrantes olhos azuis vestido numa impecável casaca branca com detalhes em dourado e com uma empoada peruca cheia de cachos a lhe encimar a cabeça. Os guardas tomaram delicadamente o príncipe dos braços de Liselotte, e novamente partiram sendo liderados pelo doutor.

Só então Maximiliano desviou os olhos da aranha para contemplar a garota.

“Então és tu a afamada trovadora Liselotte de quem tanto ouço falar, que recebes de meu bolso uma substancial pensão por cada quimera que publicas?”

“Estou tão descontente de estar aqui quanto tu estás em ver-me, Vossa Majestade”, respondeu ela, sendo a única que podia rebater aos chistes do rei ilesa. “Apenas quis cumprir meu papel de súdita e livrar o príncipe de qualquer perigo.”

“Saibas que se não fosse pela estipulação daquele meu estúrdio primo de continuar pagando-a meramente por serdes a filha daquele tal Johannes, a essa altura não teria esta vida preguiçosa que tendes! Vós, poetas, são todos iguais – uns folgazões! Por isso vos detesto tanto!”

(Maximiliano era o primo do rei anterior, que falecera tão virgem quanto a magnânima – e quase mítica – Gloriana de Inglaterra.)

Após uma breve pausa, o rei continuou:

“De qualquer forma, encontraste este filho meu; e se estava ele em companhia de uma mulher, ao menos não é tão apalermado quanto o julgava ser – mesmo que tal mulher seja uma trovadora, afinal. Estou obrigado a dar-te uma recompensa, como roga o protocolo – que vais querer?”

Liselotte estava para responder que não queria receber qualquer paga adicional das mãos do rei, já que a pensão pelos louros do pai cedida por ele de má vontade lhe era mais do que suficiente; porém, ao lembrar-se de algo que havia achado deveras estranho, perguntou:

“Antes que possa eu pensar em algo, Vossa Majestade… Permite-me fazer-te uma pergunta?”

“E já não a fizeste?”

O rei riu por bastante tempo de seu infame gracejo. Apesar de saber de certa forma que não era mal-intencionado, Liselotte sentiu vontade de dar-lhe uma bofetada nas faces protuberantes e flácidas; e vendo os semblantes dos guardas que a ladeavam, pôde ver que eles ocultavam dentro de si o mesmo sentimento.

“Certo, certo”, disse o rei, recuperando o fôlego e com o rosto vermelho de tanto rir. “Deixarei que pergunte-me mais uma coisa. Estou deveras bem-humorado hoje.”

“Enquanto carregava o príncipe até aqui, ouvi-o suspirar várias vezes um nome… ‘Loriolo’. Este nome vos é familiar?”

“Era esta tua pergunta?” Maximiliano mal podia ocultar seu descontentamento. “Antes me houvésseis perguntado se não poderia eu ceder-te meu trono e as joias da Coroa! Loriolo era nosso bobo da corte; morreu há alguns dias. Um sujeitinho impertinente…! A antiga rainha mandara chamá-lo quando o príncipe era criança – aceitei-o contrariado. Sempre detestei truões, palhaços, bobos e coisa que o valha! Entretanto, por alguma razão o garoto era bastante afeiçoado a ele; só o via sorrir em sua companhia, apesar de eu não aprovar que ficassem juntos por tanto tempo… Enfim, já escolheste a benesse que queres de mim? Podes pedir-me qualquer coisa… Menos meu lugar, é claro!” E encerrou sua fala com um risinho.

Ao falar com o rei cara a cara pela primeira vez, e reparando na frígida atmosfera dentro daquelas paredes, agora Liselotte conseguia compreender os motivos da fuga e da aparente tentativa de suicídio do príncipe Tediato. Por alguma razão começara a simpatizar com ele sabendo que tinha que aturar a vida num ambiente tão fértil à tristeza que lhe enlanguescia a alma, consequentemente induzindo-o a crer que só a morte o libertaria de lá.

Após um minuto de silêncio, a garota respondeu ao rei:

“Vossa Majestade, peço que me concedas o posto vago de Loriolo.”

O rei não conseguia acreditar no que ouvira; explodindo em gargalhadas, por pouco não perdeu o equilíbrio, vindo a cair do trono. Porém, vendo que o semblante de Liselotte mantinha-se inabalável, constatou que aquilo não era uma piada.

“Então falas sério? De fato queres que eu a coroe com o gorro tilintante dos lunáticos?”, perguntou-lhe após recuperar a compostura.

“Sim, Vossa Majestade.”

“O que almejas na realidade? Aproximar-se de meu filho e seduzi-lo com teus versos baratos de amor a fim de tornar-se rainha? Julgas ser como aquele Tasso, espumando de insânia, a perseguir Leonora d’Este?”

“Me julgas muito mal de fato se achas que meu coração busca os sórdidos triunfos efêmeros da carnalidade. E espanto-me ouvindo que conheces Tasso. Apenas quero confirmar aquilo que já deduzi de certo modo – as causas da melancolia do príncipe herdeiro.”

Valendo-se de um lenço, o rei enxugou algumas gotículas de suor que começavam a escorrer por sua testa. Abriu a boca para dizer algo; entretanto, fora interrompido pelo retorno do médico real.

“O príncipe está fora de perigo”, proclamou ele. “A quantidade de beladona que ingeriu não foi o suficiente para matá-lo, mas deve ficar de cama pelo menos até a próxima semana.”

E retirou-se novamente após fazer uma mesura ao rei.

Este, por sua vez, voltou suas atenções a Liselotte, impassível em seus desejos de tornar-se o novo bobo – ou, neste caso, a boba – da corte. Após respirar fundo, e pensar por alguns minutos, perguntou-lhe:

“Nada posso fazer para dissuadir-te?”

“Não”, respondeu ela.

“Pois bem”, suspirou, cruzando as mãos sobre o ventre. “Proponho-te um trato, assim sendo.”

“Como quiserdes, Vossa Majestade.”

“Na próxima semana voltarás aqui, em trajes de bobo, e servirás única e exclusivamente a meu filho. Se fizerdes com que seu humor melhore de modo igual ou superior ao de Loriolo, duplicarei a pensão de poetisa laureada que recebes e farei com que lhe publiquem as obras em luxuosos fólios adornados com todas as teteias que vós, poetas, tanto apreciam; mas, caso falhares, nunca mais haverás de pôr os pés em meu castelo novamente.”

“Aceito as condições que me foram impostas, Vossa Majestade.”

“Podes retirar-te, então, e nos veremos novamente daqui a sete dias!”, declarou o rei, pedindo aos guardas para que acompanhassem a garota à saída. “Suponho que haja uma tênue linha entre um poeta e um truão, afinal de contas…” E riu sozinho de sua piada mais uma vez.

Quanto a Liselotte, à medida que seguia do castelo de volta à sua casa, conseguia pensar em apenas duas coisas: em dedicar um velado epigrama deveras mordaz ao rei Maximiliano assim que pudesse, e na saúde (tanto física quanto mental) de Tediato.

[Continua no Cap. VIII]

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 14/05/2011
Reeditado em 19/10/2022
Código do texto: T2969809
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.