Liselotte e Tediato (Cap. V)

Todo o reino da Boêmia se encontrava num estado de polvorosa e apreensão devido ao recente desaparecimento do príncipe herdeiro, Tediato.

Liselotte lembrava-se bem das vezes que o vira em público, durante alguma celebração ou ofício real – e em todas elas o príncipe demonstrava em seu semblante um desgosto profundo e quase que tangível. Apesar de não desejar-lhe qualquer mal, ela não podia deixar de julgá-lo (deveras erroneamente) um nababo displicente e apático que podia se dar aos luxos de abandonar suas funções reais a bel-prazer, e que queria evadir-se de qualquer responsabilidade a todo custo.

A verdade, porém, é que a mais negra melancolia corroía o ser de Tediato até a medula.

Criado sobre os excessivos rigores do pétreo protocolo da família real, desde a mais tenra idade seu mundo resumia-se aos ritos do castelo, às entediantes aulas que lhe eram ministradas por seu preceptor (um velho sorumbático e empolado, calvo, de antiquíssimas e enxovalhadas vestes e pince-nez que tossia escandalosamente ao fim de cada sentença e aparentava nunca ter sorrido desde que viera ao mundo), aos mimos desprovidos de amor que lhe eram concedidos pelos pais e aos incontáveis livros da biblioteca real, mantida por gerações mas utilizada mais ou menos frequentemente dependendo do monarca que presentemente ocupasse o trono.

Raríssimas vezes em sua vida Tediato conhecera outras crianças de sua faixa etária, passando a maior parte de seus dias ensimesmado no seu quarto sendo atendido pelos criados, que lhe proviam todas as suas necessidades. Apenas via os pais quando estes lhe requisitavam a presença para algum compromisso formal da Coroa, e era proibido de deixar os limites do castelo longe deles sem um extenso cortejo a segui-lo.

Sentindo-se um pássaro engaiolado, passou a encontrar conforto nos livros da biblioteca, evadindo-se cada vez mais da realidade; tentava enganar-se dizendo a si mesmo que, um dia, alguém haveria de tomar-lhe pela mão e levá-lo para conhecer todos os lugares sobre os quais lera nas histórias, onde ninguém nem desconfiaria de que era um príncipe – mesmo sabendo no âmago de seu ser que tais chances eram ínfimas.

O mais próximo que tinha de um amigo dentro daquelas gélidas muralhas era Loriolo, o bobo da corte – um sujeito ruivo com um grande nariz que mais se parecia com o bico de uma ave e membros tão esbeltos quanto as pernas de uma aranha, cuja insanidade talvez valesse mais do que o “siso” do qual tantos homens se vangloriam de ter. Sempre que possível passavam o dia todo juntos; Loriolo dava-lhe colo, o presenteava com graciosos brinquedos de madeira que ele mesmo fazia e o entretinha com histórias sobre o reino da Lua, de onde dizia que viera, ou com as mais impressionantes cabriolas e piruetas.

E, assim, o bobo passou a ser o único que podia compreender os pesares do príncipe e oferecer-lhe consolação, servindo-lhe como seu confidente e uma figura paterna muito melhor do que o próprio pai lhe fora – apenas a morte viria a interromper a amizade da dupla já que, considerando que Loriolo havia cumprido muito bem seu papel na Terra, resolveu agraciá-lo mandando-o de volta com todas as honrarias que merecia àqueles que deixara na Lua.

O bobo havia morrido há cinco dias; a data coincidia com a fuga de Tediato das dependências do castelo, e desde então, onde quer que a guarda real investigasse, nenhum vestígio do príncipe podia ser encontrado.

Quanto ao rei, passeando por suas longas e elegantes galerias, abarrotadas de retratos de membros passados e presentes da dinastia à qual pertencia, não conseguia compreender como o rosado, sadio e sorridente bebê ao qual condicionara para ser o sucessor de seu reino se tornara aquele rapaz que agora contemplava pintado – vestido como se em luto perpétuo pelas alegrias que lhe morreram antes mesmo de recebê-las, cabelos castanhos de caracóis tão desarranjados como sua mente sobre os quais a coroa parecia ter o peso de chumbo, vácuos olhos de cor igualmente castanha – sombreados por púrpuras olheiras – nos quais às vezes cintilava uma fagulha passageira de euforia, um barbado rosto redondo e lábios eternamente crispados num ennui que estava profundamente arraigado à sua alma, ansiando unicamente pela libertação suprema da morte como um velho moribundo no ápice de sua enfermidade, mesmo tendo apenas vinte e poucos anos.

[Continua no Cap. VI]

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 01/04/2011
Reeditado em 19/10/2022
Código do texto: T2884091
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