Liselotte e Tediato (Cap. III)
Dentre todos os súditos da Coroa da Boêmia, afamados seja por feitos militares, pela nobreza de sua estirpe ou por qualquer outra habilidade empregada em prol do bem-estar da nação, talvez a única a ser conhecida única e exclusivamente pelos atributos de uma personalidade tão outré era a trovadora Liselotte.
Geralmente podia ser ela encontrada em qualquer praça de sua preferência, condizendo com o dia da semana, ora lendo em silêncio, ora desenhando, ora declamando suas herméticas poesias (Ossian incorporado em contornos de mulher) a alguma multidão de neófitos que agraciavam-na com seus aplausos – mais em tributo à sua beleza do que por de fato compreenderem o teor de seus versos.
Liselotte tinha aquela beleza estatuesca e, ao mesmo tempo, fantasmagórica das vaporosas mulheres de Poe, e poderia muito bem passar pela quarta irmã esquecida das Madonas do Pesar de De Quincey. Sempre elegante e impecavelmente trajada em negro, os cachos de seus cabelos da mesma cor coroavam-lhe a cabeça feito um diadema, esparramando-se como as ondas de um mar revolto, convidando aos incautos para decifrarem-lhe seu enigma.
Duas rosas tingiam-lhe as faces pálidas como se lavradas de finíssima porcelana; seus olhos castanhos cintilavam como plácidos lagos quando a alegria vinha brincar em seu semblante – porém, se a fúria a acometia, ardiam como cataratas de lavas vulcânicas. Um homem poderia receber tanto a salvação quanto a danação daqueles olhos – e do enviesado sorriso que sempre se lhe desenhava nos lábios carmesins, como se a vida lhe fora tão somente uma piada de mau gosto.
Há quem diga que a alma humana habite um mundo próprio antes de Deus lançá-la à Terra para que, encarnando sucessivas vezes, aproxime-se da purificação e, consequentemente, de um estado próximo a Ele; não estou aqui para contestar tal teoria, afinal nada tenho a ver com os filósofos, mas se for de fato verdadeira a alma de Liselotte baixou em nosso plano muito a contragosto. Por mais que tivesse encontrado uns poucos amigos com quem pudesse discutir de forma sensata sobre sua poesia ou a de outros, tudo aquilo que fosse demasiado carnal ou terreno lhe causava repugnância: no dia de seu nascimento, enquanto passeavam juntas a fim de aproveitarem o belo dia que fazia sem o conhecimento de suas sete irmãs restantes, Calíope e Urânia avistaram seu diminuto corpo de recém-nascida ressonando – achando-a tão encantadora, cada uma marcou-lhe seu sigilo no coração, pois não gostavam de discutir entre si.
Assim sendo, sua mente era populada por heroicos feitos de vikings dos tempos das Sagas, pelos encantos de Freyja escritos em runas, por combates premiando o vencedor com um assento no Valhalla – e pelos mistérios que o negro e imperscrutável véu de Éter teria a esconder no espaço. Aquele que tivesse tempo ou paciência o bastante para sondar os cérebros de todas as outras mulheres do reino os encontraria repletos das momices típicas da feminilidade desprovida de siso – isso quando um cérebro de fato poderia ser achado!
[Continua no Cap. IV]