Capítulo 1 de A reeducação sentimental de Xavier Renart (Título Provisório)
Capitulo 1 - Retorno a um futuro familiar
A aparência espartana do sofá não correspondeu à sensação de conforto e relaxamento quando foi abraçado e afundou nas almofadas azuis recheadas de espuma de silicone. Inspirou o cheiro da sala recém montada. O cheiro do safrol denunciava os móveis e as placas entalhadas em canela sassafrás. A secretária acabara de anunciá-lo;
- Aguarda um pouquinho que o Dr. Tomás vai te atender.
- Obrigado.
A secretária continuou olhando em um caderno que estava olhando antes e fazendo ligações. Ela parecia ser familiar. Tinha a impressão de que a conhecia mas não se lembrava de onde. Ela estava mais bem vestida do que os outros funcionários que ele havia visto antes. Um taier cinza escuro, provavelmente em algodão 120. Nada da microfibra dos uniformes das atendentes anteriores. A camisa com texturas indicava também a maior qualidade da vestimenta. Isso fora o cabelo bem tratado, e a aparência jovial e saudável, sem deixar de esconder uma idade próxima a sua. Tudo isso indicava que possuía uma qualidade de vida e que se cuidava. De onde a conhecia?
Isso estava meio perdido no passado. Passado que ele estava ali tentando retomar. Evitou pensar no assunto e retomou a atenção sobre a sala e as sensações que o rodeavam. Lá estava o safrol e o perfume suave das orquídeas e dos dentes de leão distribuídos nos vasos em tons de azuis, formas e tamanhos diferentes. Os maiores no chão, o menores no aparador. O cheiro do algodão das almofadas completava o ambiente olfativo, junto com um cheiro de mel, provavelmente da cera do chão. Os quadros de autores variados apresentavam sempre uma grande luminosidade, carregados com os tons variados de azuis, mas com os amarelos solares que contratavam com os brancos da flores e das paredes, do dourado-avermelhado das madeiras e dos tapetes, e os diversos tons de azuis que suavemente impregnavam toda a sala. Se ainda conhecia bem seu antigo amigo de faculdade, todos os quadros seriam de pintores mineiros, já relativamente conhecidos, mas ainda não destacados e disputados. Dos sete quadros na sala podia identificar que três deles eram de um talentoso pintor amigo, que ele o apresentara em uma viajem anterior a Belo Horizonte. Os outros quatro pareciam pertencer a três diferentes pintores que ele não conhecia. O maior, com um por do sol e crianças brincando em uma paisagem de cidade pequena era uma explosão de luz na sala.
Percebeu que se sentia confortável com todos aqueles estímulos, e sorriu, lembrando dos arquitetos que conhecera e que apresentavam fórmulas prontas para o ambiente não ficar carregado. Com certeza aquele ambiente, por definição dos modelos teóricos, não era para ser um ambiente suave, mas, ali estava ele, naquele ambiente suave e tranqüilizante, acolhedor. Um medo lhe acometeu direto no estomago nesse momento. Voltara a se lembrar do porque estava ali. Oito anos já haviam se passado, quatro desde a última vez que vira Tomáz. E ao que parece ele crescera muito. Com certeza não era mais o amigo doce e sonhador que ele deixara, e que iniciava um processo de reflexão profunda e solitária, que agora parecia ter lhe rendido muitos frutos.
Ele é que estava no processo de reflexão profunda e solitária agora. Construíra outra vida longe dali. Mas dera errado. E ele não suportava mais viver aquela vida. Volta... não, partira para outro lugar. Um lugar que ele já conhecia, conhecia e desconhecia, como a secretária a sua frente. Reparou nas duas estátuas em vinhático próximas a porta que não havia reparado antes. Percebeu outras duas ao lado do sofá. Essas ele conhecia. Lembrou-se do amigo em comum de faculdade que deixara a psicologia e fora virar artesão. Pela qualidade das esculturas, com animais estilizados característicos dele, ele fizera muito mais negócio, pois sua estrutura emocional frágil, e sua pouquíssima predisposição ao estudo não o deixariam ir muito longe como psicólogo. Será que Tomáz mantinha contato com os todos os ex-colegas sempre? Ou o contato era esporádico como com ele. Esporádico, rápido, superficial, mas sempre afetuoso. Tanto que ele criara coragem de ir ali nesse momento. Outra vez o nó apertou em seu estômago. O pensamento, ao mesmo tempo, lhe deu uma sensação de estar certo de estar ali e aumentou sua ansiedade. Reparou que embaixo dos vasos no aparador existiam pequenas toalhas circulares brancas e bordadas com motivos florais em branco também.
A porta abriu sem o aviso esperado da secretária.
- Senhor Doutor Renart, L.X.
O antigo amigo o olhava com a mesma cara sorridente que ele conhecera antes. O jeito e tom de voz ao mesmo tempo acolhedor e provocativo que ele tratava as pessoas não mudara.
- Vem pra cá Xavier. Você lembra da Djanira, minha prima.
Xavier a comprimentou meio sem graça. – É, eu vi a conhecia de algum lugar mas na lembrava de onde, ai fiquei sem jeito de perguntar. Ela sorriu meio sem graça também.
– Problema na memória é um dos principais indícios de velhice e de Alzheimer Xavier – Tomas seguia com seu jeito afável e provocador. Com a mão no ombro do amigo o encaminhou para dentro da sala.
Sentiu-se mais confortável com aquela acolhida informal e descontraída. O amigo continuava o mesmo, mas dava para perceber por detrás de sua cara amigável e brincalhona que ele envelhecera. Muito mais por dentro que por fora, pois estava com ótima aparência. Parecia estar muito bem de saúde. Bem diferente da pessoa abatida, já bem acima do peso e mal tratada que encontrara das últimas vezes. Sua calva havia diminuído, com certeza tinha feito transplante. Pensou em brincar com o assunto, mas ficou receoso de qualquer brincadeira. Mais uma vez o aperto no estômago veio contra a sensação de tranqüilidade e felicidade anterior.
A sala mantinha o mesmo colorido e luz da sala de espera. Na verdade parecia muito mais um misto de sala de uma casa com biblioteca pessoal do que de um escritório. Sofás, uma mesa de jantar de 6 lugares, um aparador e várias estantes, as fechadas com livros e pastas e as abertas com pequenas esculturas e objetos decorativos. Nas paredes os quadros dos autores que estavam presentes na sala de espera e mais alguns pintores novos. Os mesmos tons de azul predominavam, com os brancos e a claridade dos amarelos nos quadros. A única diferença era a presença maior de vermelhos e verdes, dos quadros, dos objetos, das flores e das plantas, que aproveitavam o espaço mais iluminado próximo da grande varanda na extremidade da sala. O mesmo cheiro da canela sassafrás dos móveis predominava na sala. Porém a porta aberta que dava para a varanda arejava melhor o ambiente, dando um ar de descontração, tranquilidade e acolhimento ainda maior do que o da sala de espera. Grande mesa de escritório, com computadores, telefone e estantes para guardar arquivos era a única coisa que indicava que ali era um ambiente de trabalho.
Tomas sentou em uma poltrona e indicou o sofá para Xavier se sentar. Mais um vez o conforto do sofá. Mas esse, só de olhar já prometia um abraço - e uma camisa amarrotada – pensou enquanto olhava para a camisa, que já estava completamente amarrotada na barriga.
- E os Merleau Pontys, Xavier, firme e forte?
- Estamos firme lá – E sorriu com a pergunta do amigo – “Firme igual prego no concreto”.
Estava relaxado no sofá e no ambiente da sala. Tomas, ao seu modo, estava relaxado também e parecia feliz em vê-lo. Arriscou um comentário.
- Você falava tanto e acabou que montou a sua universidade mesmo, não é Tomáz. E parece que está dando certo – comentou enquanto olhava para a sala do reitor – E seu sócio vai virar vice-prefeito agora. Fiquei sabendo. Aposto que você entrou de cabeça na campanha.
Tomáz sorriu fazendo uma cara de preguiça. – Nada, agora estou mais por conta aqui da universidade mesmo. Claro, tive que realizar algumas atividades no processo eleitoral, mas nada de ir para a rua. Esse tempo já passou para mim. Deixo isso para o Juarez mesmo. Ele gosta, então ele que vá. E não tenho muita paciência nem para ficar articulando mais, mas isso ainda dá para fazer de vez em quando. Agora, campanha, neinnnh. Você é que está mais articulado com as altas políticas do que eu. Fiquei sabendo que estava como secretário no governo lá no Goiás.
- Pois é. Agora com política mudando vou sair. Mais um mês. Mas agora estou basicamente trabalhando no processo de transição.
- Não vai continuar?
- Não, já deu para mim. Quero voltar a ficar por conta da academia.
- E lá na federal, ta jóia? Se quiser largar a estabilidade e a traquilidade de lá e vir para cá se divertir, é na hora ta Xavier. Estamos precisando de gente boa como você.
Xavier ficou silencioso e olhando para baixo sem saber como iniciar a conversa. Agora não sentiu o ambiente, só a pressão no estômago. Não pensou muito. Aproveitou a abertura para a conversa que o amigo dera e continuou.
- Pois é Tomás, é disso mesmo que vim falar com você. Não sei se você sabe, mas eu separei.
- Fiquei sabendo mais ou menos pelo Couto. Mas como é que você está?
- Foi no final do ano passado. Passei até o meio desse ano tentando resolver isso. Mas não é coisa para ser resolvida não. Acabou mesmo. E eu tava mergulhado nesse casamento de corpo e alma. Sai daqui e fui lá para Goiás sem conhecer ninguém. E me estruturei rápido, mas tudo em função da família da Júlia. O pai senador, o irmão deputado. Eu era da parte intelectual da família. E isso era interessante para eles também. Tanto que assim que passou os três anos lá na Federal comecei prestar consultoria para o governo. Aí trocou o governador e fui para o governo de vez. E os amigos eram todos os amigos da família. Na verdade nem posso reclamar muito do Dr. Jandir não (agora, na frente do amigo também acadêmico, sentiu o tanto que soava ridículo chamar o ex-sogro de Dr.). Ele continuou sempre me tratando muito bem, mesmo na questão lá do governo, mantive a secretaria adjunta, e quando o secretário saiu para a campanha dele para deputado eu assumi a secretaria. Era provisório, mas pude manter a dignidade, entende? Mas a sensação que tenho é que esses oito anos que passei lá, apesar de ter sido um período de muito crescimento, agora parecem como se eu estivesse vivendo uma vida que não era a minha.
- Entendo o que você fala sim Xavier. O amigo o olhava com ar sério e um pouco triste.
- Eu tenho pensado muito nisso nesses últimos seis meses Tomás. Nem é das pessoas de lá não, pois tem muita gente que gosta de mim. Mas eu não me sinto confortável de ficar lá mais.
- E com a Júlia? Perguntou Tomás.
- Ah, eu fiz um monte de bobagem. No início a gente ainda conversava, e ela até que tava sendo razoável comigo. Ma acho que eu não tava sendo muito razoável com ela não. Ai depois a coisa perdeu o pé mesmo. Não aconteceu nenhum fato marcante, escandaloso não, mas acabou mesmo.
- Nossa Xavier, mas o que aconteceu. Vocês pareciam se dar tão bem. Você acha que acabou mesmo, que não tem mais jeito não.
- Tem não Tomáz. Acabou mesmo.
Xavier ficou em silêncio revendo as cenas de seu casamento desabando. Das pessoas sendo solidárias a ele, mas sempre parecendo que ele causava algum incômodo a eles. Sentia sempre a ansiedade das pessoas em relação a ele. Da gravidez que não vinha. E do filho perdido depois que a gravidez finalmente veio. Da esposa se deprimindo e começando a rejeitá-lo cada vez mais. E ele deixando de ser ele mesmo cada vez mais também, para assumir um papel que não era o dele, deixando a universidade, deixando os amigos e os projetos antigos cada vez mais para traz, assumindo a função de homem da elite do estado, mandando, negociando, assumindo os projetos do sogro e tentando se aproximar da esposa que afundava. E da sua falha em consolá-la e em trazê-la à tona para viver junto com ele. Até que a própria esposa desistira de esperar a ajuda dele também.
- Não tem jeito mesmo não Tomáz.
Tomáz ficava silencioso prestando atenção no amigo ali mostrando dor na sua frente. Aguardou o silêncio de Xavier até ele retomar a conversa.
- Estou querendo ir embora de Goiás, voltar para cá.
- Uai Xavier, você acha que compensa para você. Você já está estruturado lá. Entendo o que você está sentindo, mas isso pode ser resolvido por lá também. E se você deixar a universidade o pessoal vai ficar meio com raiva de você.
- Eu sei Tomáz, mas acho que... não sei, a única coisa que quero é sair de lá, daquele ambiente. Ir para algum lugar onde não encontre as mesmas pessoas, não encontre tudo que me lembre o tempo todo do meu casamento. Por isso eu estou pensando em voltar para cá – Não olhava nos olhos de Tomáz enquanto falava.
Tomáz percebia a dificuldade do amigo em continuar a conversa. Estava preocupado com Xavier. Jovem cheio de iniciativa, tranqüilidade e persistência que ele conhecera estava ali na sua frente chegando de uma fuga. Mas Tomáz conhecia bem essa situação, de quando o homem é colocado no seu limite. Não era incapacidade de enfrentar a situação que o amigo apresentava ali na sua frente. Mas uma falta de motivo para continuar uma luta. Xavier chegava na sua frente como um homem perdido, que havia sido derrotado, que havia fracassado. Um corte havia se estabelecido na vida dele. Ele buscava só completar o corte de vez.
- Você quer vir trabalhar aqui com gente Xavier? Se quizer. pode ter certeza que é bem vindo.
- Quero sim Tomáz. Sei que agora no fim do ano as vagas para professor já devem estar todas tomadas, mas tenho como me sustentar durante o próximo semestre com tranquilidade. Mas eu preciso fazer alguma coisa. Tenho que trabalhar. Mesmo que seja só participar de algum projeto, ou mesmo alguma coisa administrativa, ganhei experiência nisso lá no governo. Não precisa ter remuneração agora não, mas preciso fazer alguma coisa.
- Não Xavier, fica tranqüilo que vamos arranjar alguma coisa para você sim. Só espera um pouco eu pensar.
- Que dia você acha que pode me dar uma resposta Tomáz?
Tomáz riu. – Calma Xavier, resolvo isso agora, deixa eu só raciocinar aqui. Você já tomou café? Nessa magreleza sua, aposto que não. Tem que comer rapaz. Esse negócio de ficar em forma quando a gente chega nos quarenta pega mal. Vou faze um café para a gente que eu só comi uma carambola antes de vir para cá. Você precisa ver esse café, é lá de perto da minha terra. Ganhou o prêmio de melhor café do pais pela milésima vez esse ano. Bom demais.
Xavier conhecia a mania do Tomáz de enfiar comida nos amigos que o visitavam e já participara da situação várias vezes. Sabia que teria que comer. Realmente não tomara café, o aperto no estômago não dava nenhuma chance para isso. Mas a situação já conhecida lhe trouxe alguma alegria de ver que algumas coisas que ele deixara ainda se mantinham do mesmo jeito. Sentiu que tomar o café seria bom.
- Então vamos ver se esse café é bom mesmo. E olha que você sabe muito bem que sou neto de cafeicultor e grande entendedor de café. – Pela primeira vez aceitara a provocação do amigo e entrara no jogo.
- Que o quê sô, você entende de café do cerrado. Isso aqui é café da zona da mata mineira, o melhor que existe, é outro nível. E riu, abrindo o que parecia ser uma estante para arquivos, revelando uma estrutura escondida com cafeteira, forno elétrico, geladeira e outros eletrodomésticos.
Na verdade havia uma míni-cozinha escondida atrás de algumas das prateleiras no canto da sala, próxima à varanda. Pegou uma toalha, e forrou a mesa de madeira de seis lugares que parecia sem propósito anteriormente na sala. Outra porta aberta do que ele achava antes que era um arquivo revelou alguns jogos de louças e taças. Pegou algumas xícaras e pratos que pareciam ser portugueses, por apresentarem o tradicional branco com cebolas azuis. Lembrou-se de que uma vez nos passeios com Tomáz nas lojas de louças dos shoppings, quando iam juntos ao cinema ou para comer, na época da faculdade, ele comentara que seu avô possui um jogo de louças para café igual.
- Olha só Xavier, para você ver – falava enquanto terminava de colocar a toalha e a louças na mesa e ia buscar talheres e copos – Por exemplo. Aposto que você só tem tomado café expresso – Xavier riu, pois era verdade. Tomáz continuou. – O café bom mesmo, fica muito melhor no coador de pano, no jeito tradicional de fazer café. O pessoal fala, "Ah, mas você tem que concentrar o sabor na xícara, e não no ar" (falou com um tom de deboche). Isso é coisa de gente miserável Xavier. O café tem que perfumar o ambiente sim. E se ele for bom, vai ter sabor e aroma de sobra para perfumar a casa toda e manter um sabor agradável no copo. Retirou um instrumento engraçado, que era como uma pequena forca presa acima de uma base plana de madeira, com um coador de pano suspenso. Em baixo colocou um pequeno bule de ágata. Retirou uma garrafa de água da geladeira e despejou uma outra pequena panela que retirou de umas das estantes da cozinha escondida. Colocou sobre algo, que ele chegou mais perto e viu, descrente, que era uma trempe de fogão elétrico.
Já estava se divertindo muito com a inusitada cozinha e com as divagações estéticas do amigo. Tomáz viu sua surpresa com a trempe.
É elétrica, não tem muito perigo não. Segundo o Juarez e o Pedro um dia ainda vou colocar fogo na reitoria. Só deixaram eu instalar isso aqui porque eles são os principais beneficiados do meu talento artístico. Mas ficaram mais tranqüilo depois que coloquei o Erawan aqui também. Apontou para o enorme quadro com um elefante de três cabeças segurando com duas das trombas segurando uma figura indiana com a cabeça pendente, e os olhos brilhante, que davam uma sensação de inconsciência misturado com estupor. As duas cabeças do elefante que seguravam os braços da figura, que devia ser algum tipo de divindade, pelas roupas, também tinham os olhos brilhantes, embora de um jeito diferente, só os olhos da cabeça da frente apresentavam consciência, olhando fixamente para o observador do quadro.
- Acho que você tinha comentado desse quadro, mas que você ia pedir para fazê-lo, com seu amigo lá de Viçosa, quando você me apresentou ele. Que você tinha tido um sonho, não é isso?
- É ele mesmo – confirmou Tomáz olhando para o quadro – É meu xodó. Ai o quando eu o trouxe para cá o Juarez e o Pedro consideraram que eu ia tomar cuidado com a sala e não colocar fogo em tudo. Mas isso aqui – apontou para a trempe - não tem muito perigo não. E se pegar fogo eu sinto o cheiro. E sempre que eu saio a Djanira vem cá, arruma minha bagunça e confere essas coisas.
Pegou um pote com grãos de café e com um colher retirou alguns que colocou em um pequeno moedor. Um cheiro suave de café surgiu quando abriu o moedor e despejou cuidadosamente seu conteúdo no filtro de pano empurrando o pó com a colher. Pegou panela com a água que agora começava a ferver e despejou sobre o sobre o coador. Quase que instantaneamente o perfume do café foi penetrando pela sala abafando os outros aromas que estavam presentes antes. Tomáz pegou uma ciabata congelada no Freezer da geladeira, a partiu com algum esforço em duas partes as colocou no forno elétrico. – Olha só o cheiro.
Xavier respirou forte o aroma do café – Esse parece ser bom mesmo – Tomáz continuou – Agora me fala, não é mesquinharia querer concentrar isso tudo em uma xícara. É coisa de gente pão dura, egoísta, gente centrada em si mesma. Olha só que cheiro bom. Isso é uma arte Xavier. E você vai ver essa ciabata que eu estou descogelando. Eu mesmo que fiz. Usei um pouco de trigo e outros grãos integrais, sei que ai deixou de ser ciabata né, mas fica bom demais, e quando faz ela assim no forninho elétrico ela sai como se fosse nova. Só perde um pouco o sabor do tostado que dá no forno a lenha. Fiz um lá em casa. Construí uma casa para mim agora. Você tem que ir lá conhecer. Acho que você não conheceu a Gaia não. Casei. Ela tem esse nome de hippie, mas é gente boa. Arquiteta. Não é a toa que isso aqui está arrumado. Quando você acabar de chegar aqui a gente combina, ai eu faço umas pizzas lá pra gente.
Xavier concordou – Só chamar que eu vou. Suas pizzas já eram boas sem ter forno à lenha, com ele então devem ser boas demais. Você fez a casa onde?
- Em Nova Lima. Agora ta com boa estrutura de estrada para vir, e acaba que fica bem perto. E tem a questão da segurança. Pode falar o que quizer, mas para ter casa, tem que ser em condomínio fechado. Eu sou meio medroso. E tem a questão de espaço também. O preço para comprar um lote em um lugar bom aqui em Belo Horizonte, na cidade mesmo, é sem noção de caro.
O telefone tocou, e Tomáz foi atender.
- Ta, quando ele chegar pede para esperar um pouco.
- Você está ocupado Tomáz, posso voltar depois.
- Não, relaxa, temos bastante tempo ainda. Só um compromisso que tenho depois. Vai dar para a gente tomar o café com tranqüilidade.
O café já estava coado. Tomáz pegou o bule de ágata e colocou na mesa. Pegou uma pequena vasilha e colocou uvas grandes vermelho-claras, e levou para a mesa também, junto com uma mantegueira. Voltou e pegou um potinho contendo cookies de baunilha com gotas de chocolate.
- Hoje estou sem, mas um dia que for para São Paulo vou trazer uns pães de mel lá do mosteiro de São Bento. Xavier, você precisa ver que delícia. Para depois do café então, nossa, fica divino. – Pareceu lembrar-se de algo, foi na geladeira e pegou um pequeno potinho e um pratinho – Quase já ia me esquecendo do queijo, vê se pode. Você volta de Goiás para cá e eu nem te ofereço, queijo. – Riu, mostrando um pequeno queijo frescal muito branco. Depois pegou as metades da ciabata torrada do forno elétrico e as colocava em uma vasilha de pães. O aroma do pão torrado veio se juntar ao do café e ambos sentaram à mesa. Tomáz serviu o café para Xavier. Pegou uma das metades da ciabata e começou a passar manteiga.
- Do que você estava dando aula lá em Goiás.
- Psicologia existencial, que era a personalidade 2, e psicologia da linguagem. Dei aula também para o curso de direito, mas foi um semestre só. No governo trabalhava na secretaria de desenvolvimento social, mas era mais atividade burocrática. No início entrei em um projeto grande de construção de moradias, e tinha uma função mais técnica, mais de psicólogo social que tudo. Mas depois foi mais burocracia mesmo. Era até interessante, porque conhecia muita gente e podia opinar mais na elaboração dos projetos, mas não era nem um pouquinho desafiador do ponto de vista teórico. A coisa era mais fazer o básico mesmo, falta muita coisa básica lá ainda para o desenvolvimento do estado, embora seja um estado bem desenvolvido do ponto de vista econômico e tenha uma estrutura que para o que acontece lá até sobra. Mas principalmente nas cidades pequenas, quando se pensa em criar projetos, esse básico ainda falta.
- Estou pensando aqui – disse Tomáz – O que você achou de dar aulas para outro curso sem ser o de psicologia?
- Interessante, a gente acaba tendo que realizar um trabalho interno de delimitar melhor os conceitos. Ai acaba aprendendo mais, porque uma coisa é ter que trabalhar com a idéia aplicada a algo já existente, mas o conceito em si, como fenômeno, a gente muitas vezes desconsidera, e trata como se fosse algo que tivesse existência própria. Mas a gente é que o constrói, e o processo de construção é contínuo. Além do mais era outra história também, os alunos eram muito mais interessados, mas acho que dei sorte também. Além de pegar uma turma boa, consegui organizar o curso de modo que ficou interessante para eles sem ficar demasiado superficial nem viajante demais.
- Pois é Xavier, estou pensando aqui numa possibilidade. Curso de design de moda. Você sabe um pouco sobre semiótica não é? – Xavier concordou – E sobre personalidade. Pode dar aulas sobre psicologia da moda. – Tomás ficou um pouco pensando enquanto comia sua torrada. – O que achou do café, você que é entendedor e neto de cafeicultor. – Xavier que está comendo o pão na hora só conconrdou com um hummm, e uma cara de satisfação - não te falei, e o pão. – Muito bom também, os grãos integrais que você colocou deram realmente um sabor especial, e da a impressão de que saiu do forno agora mesmo – respondeu Xavier limpando com a boca cheia – depois você prova essas uvas, são boas demais da conta. Disse Tomás enquanto se levanta com algumas uvas na mão e ia em direção a mesa de escritório pegar o telefone.
Ao telefone falou com a secretária – Djanira, acha o João para mim. E desligou voltando a mesa comendo as uvas. Xavier provou uma das uvas. Só pão com o café e algumas fatias do queijo já o tinha satisfeito. Mas a uva realmente estava boa, e sua acidez proporcionava uma sensação refrescante depois do café e do pão amanteigado. Pegou um pouco de água enquanto Tomáz ainda atacava as uvas e também tomava água. O telefone tocou.
- Oi! Pode passar para mim... Senhor Doutor Professor João Celestino, meu Coordenador, como vai vossa senhoria?... Passou bem de ontem para hoje?... HAhahahahahaha... Oh, não pode ficar me chamando desses apelidos mais não viu. Você trate de se reportar à minha pessoa de maneira mais respeitosa porque agora eu sou seu superior hierárquico e empregador... hahahahahahaha... Hein! Rarrá! Vã ilusão a sua de que essa idéia possui algum resquício de possibilidade de acontecer. Faça de bobo para você ver que eu mando o capitão do mato atrás de você... Hahahahaha, não, não é ele não. Coitado, ele já está com trabalho demais. O capitão do mato é outro... É, não tenho ainda um não, mas arranjo... Ah, você ia ficar feliz só de me dar trabalho né. Pois para você ver como você é uma pessoa injusta, eu estava te ligando justo para tirar problemas... Está jóia. Encontrei com ela semana passada lá em São Paulo... Está a mesma coisa, não tem jeito ali não... Vem nada, já cansei de chamar. Ela está bem estruturada lá agora, e continua no mesmo deslumbramento. Ainda mais agora, arranjou um italiano lá do jeito que ela gosta, branquelão, grande, gordo e sem pelo... Hahahaha, pois é, estou pensando é em convencer a trazer ele para cá, que deve ser mais fácil, para ver se ela vem junto... Hahahahahahaha...
- Olha só, mas deixa eu te falar. Estou ligando é para tirar um problema grande das suas costas... uai que problema, qual problema grande que você tem? Uai João, eu... Hahahaha... Pois, é. Estou com um amigo aqui, muito mais inteligente e qualificado para a missão de sensibilizar nossos futuros top-desingners para as sutis nuances e influências do psiquismo na moda... É. Ele é professor da federal de Goiás... Psicólogo, Doutor... Isso. E tem outra coisa. È muito mais bem apessoado que eu... Hahahahahaha, não, lá eu já cheguei a conclusão que tem que ser psicólogo social para resolver... Hein? Não, o problema lá é de histeria coletiva... Hahahahahahahaha... Hunhumm... Está bem. Pode deixar, eu vou passar aqui para ele os meus programas para as matérias e os materiais para ele já ficar mais interado... Sim... Quer conversar com ele agora? Ah! Tudo bem. Passo seu número para ele e ele combina com você então. Mas dá tempo essa semana ainda né. Está jóia então. Vou passar o seu número para ele e ele combina com você então. Abração meu caro... outro... falou, tchau.
- Tomáz, você vai deixar suas matérias? Não precisa não, tenho como me manter esse semestre...
- Não Xavier, relaxa. A gente tinha onze cursos. Próximo semestre vamos começar mais oito, ou seja, a universidade vai praticamente dobrar de tamanho. E vou finalmente lançar meu livro sobre controle também. Ai queria dedicar um pouco mais a construir uma série de conferências que vou dar através do nosso centro de extensão e com o pessoal do laboratório do Augusto, que foi meu orientador, para divulgar no meio empresarial também. Se eu mantivesse as aulas isso ia ser meio pesado. É bom que vou poder focar nisso... Ai, resolvo a questão das aulas para você e você resolve a questão de para quem passar as aulas que eu tinha. Olha só que lindo. – E riu para Xavier.
- Nossa, Tomáz, obrigado então. Como que são as turmas lá no design de moda?
- Do mesmo jeito, que em todas, tem gente animada, gente desanimada, uns mais estudiosos e inteligente e outros mais devagar. A única diferença é que eles se vestem de maneira um pouco diferente. – Disse sorrindo com um ar de brincadeira – mas é interessante. Vou te passar o plano de curso. Espere um pouquinho, quer ver? – levantou-se e foi a uma das estantes com os livros. Procurou um pouco e voltou com quatro livros na mão.
- Esse e sobre moda, um livro básico, geralzão. Esse aqui é sobre moda também mas já em uma perspectiva mais aplicada à criação de tendências, e tem alguma discussão sobre a questão da personalidade para quem se cria uma tendência na moda. Esse pequenininho aqui é a única coisa que achei sobre psicologia da moda que presta até agora. Bom que você exercita seu inglês. E esse daqui é sobre imagem e personalidade. Acho esse muito interessante. Mas vou te mandar as aulas que já preparei, que tem muita coisa também. Tem uns artigos, que vou te mandar também, e estão no plano de aula. Vou te mandar o plano de curso de semiótica que fiz para eles também mas mais para você ver o que eu estava trabalhando. Acho que você entende mais que eu disso. Então, sinta-se a vontade para fazer do modo que preferir e a me procurar para tirar qualquer dúvida. Ah, só uma coisa: não dá para dar textos em língua estrangeira para os alunos não viu. Vai ter um grupo grande que lê em duas ou três línguas, mas ai você passa os textos para esses se eles te procurarem procurando mais bibliografia, mas na aula no dia a dia, é melhor nem tentar, pois a maioria além de não ler vai começar a te encher a paciência.
- Ah, isso é assim em todo lugar. Lá na UFG nem tinha esse grupo que fala língua estrangeira. Acho que vou ficar até mal acostumado aqui.
- Bom, então a questão das aulas é isso. Você vai receber por doze horas de aula. Duas disciplinas de 3 horas semanais, as duas sendo em turmas uma de manhã e outra de noite. O horário você vai ver com o João. E mais oito horas em algum dos laboratórios onde você vai ter que desenvolver algum projeto com pelo menos dois alunos. Acho que para iniciar seria interessante você começar em algum projeto já existente de curto prazo enquanto prepara um projeto para você. Sugiro que entre no mesmo laboratório que eu estou, que é o de tendências, e faça o trabalho que eu vou deixar de fazer e jogar na sua mão – E riu de novo – Mas acho que você vai gostar. Aí tem que fazer dois artigos por ano, com os alunos, um por semestre. Pelo menos, se quizer fazer mais, sem problema.
O telefone tocou. Tomáz pediu licença e foi atender.
- Sim, está bom. Pede ele para esperar um pouquinho que vou só terminar aqui e já atendo ele. – desligou e voltando-se para Xavier – Hummmm...
- Tomáz, posso voltar outra hora se preferir.
- Não se preocupa não, só tem mais... Ah é! Bom, ai vai dar 20 horas. Isso deve dar mais ou menos a metade do seu salário lá em Goiás. A gente vê depois um jeito de te fazer progredir. Temos quarenta horas, que sobe mais as atividades de pesquisa, e a pessoa tem que dar aula na pós, e os de dedicação exclusiva, que tem as atividade de pós, de aula, de pesquisa e em alguns casos de coordenação de laboratório e ou de gestão das atividades dos cursos. Mas isso você vai ver com detalhes com o tempo. Mas o que quero te explicar é a questão da extensão. Nossa universidade tem uma vocação extensionista na sua constituição fundamental, e isso se materializa em nossas empresas. Hoje, para você ter idéia, temos quarenta e duas empresas já em fase de operação plena, dessas, doze já estão dando lucro significativo. E temos outras oito em processo de incubação. O ganho superior mesmo que você vai ter vai ser através dessas empresas. Ou melhor da empresa da qual você participar. Pega um formulário com o João que lá está explicando tudo certinho de como isso funciona. Mas acho que você deveria começar da mesma forma que no laboratório. Entrando em uma para desenvolver um projeto específico de curto prazo, com empregado e depois se articulando com alguns alunos para propor algo para vocês. Ah, tem isso também. As empresas são sempre junto com os alunos. Esse ano começa formar as primeiras turmas. Estamos já com os cursos se especialização voltados para a qualificação dos que não entraram nas empresas para montar algo também junto com a gente. Aí, as empresas que acharmos interessantes vão para a nossa incubadora e vamos desenvolvendo o que tiver mais sustentabilidade. Até agora, mais ou menos setenta por cento dá errado, mas acho que com uma melhor preparação dos alunos nas pós graduação, e com a experiência de incubação que a gente vem ganhando vamos aumentar a taxa de sucesso. Mas de toda forma estou te falando isso para você já ir pensando em alguma coisa para você, sem pressa, mas dê uma pensada durante esse ano. Minha expectativa é que você fique milionário e me dê trinta por cento do que ganhar – E riu novamente, dando um tapinha no ombro de Xavier, enquanto se levantava, indicando que a reunião tinha acabado. Xavier se levantou e Tomáz o ia conduzindo para a porta.
- Quando você retornar, e já estiver se estruturado aqui, me fale para a gente marcar de você ir conhecer minha casa e minha esposa. Mas se precisar de qualquer coisa também Xavier, me dá uma ligada que no que puder ajudar você pode contar comigo.
- Valeu Tomáz, obrigadão mesmo viu.
- Ah, não precisa agradecer não, eu estou é achando bom demais você estar vindo. Eu é que tenho que te agradecer porque você está quebrando um galhão para mim. – Tomáz despediu-se de Xavier sem sair da sala. Ao sair, Xavier cumprimentou a secretária, e o homem que esperava na ante-sala o cumprimentou também com um sorriso e um aceno leve com a cabeça. Retribuiu o cumprimento, e enquanto entrava no elevador escutou.
- Meritíssimo e excelentíssimo juiz e doutor professor Lins, se você prometer não fumar na minha sala vou te mostrar o melhor café do mundo.