Liselotte e Tediato (Cap. I)
Até mesmo Satã é predisposto ao lazer.
Muito provavelmente, num dia em que estava deveras entediado e sem ideias para seus estratagemas ambicionando a eternal danação de nossa raça, com o intuito de vingar-se daquilo que levianamente perdera por consequência de seus próprios atos, seguiu à sua biblioteca para ler – afinal, não quer dizer que o diabo não seja um cavalheiro culto e letrado.
Sentado indolentemente em sua poltrona, calçando confortáveis chinelos felpudos e um robe de chambre escarlate com seu monograma bordado no peito (e com um buraco por onde sua cauda saía), folheava um exemplar do “Decamerão” – ao término da leitura, tendo sua criatividade atiçada, conjurou das mais insondáveis profundezas de seu lar este miasma que a tantos valorosos vem levando dia após dia, e que nem o próprio Boccaccio conseguiria descrever em seu tempo.
Tendo vários séculos se passado desde então, creio que Boccaccio tampouco conseguiria imaginar que, nestes nossos dias tão gélidos e racionais, seus caprichosos príncipes e princesas, e seus burladores e galhofeiros palhaços, foram substituídos por sisudos homens vestidos de negro, percorrendo as ruas da cidade feito autômatos absortos em seus trabalhos e que se interessariam mais por uma letra de câmbio do que por um conto ou canção; e as mulheres mais se assemelham a estátuas de mármore – pois, mesmo que belas, em nenhuma delas lhes bate um coração no peito!
E tendo eu pouquíssimos amigos, e tampouco conhecendo algum aprazível e isolado retiro para onde me evadir e lá entreter-me com fantasiosos contos, cá estou preso em meu quarto – não com a joie de vivre de um Xavier de Maistre, e sim com o desespero de Boécio perante a morte – morte esta que poderia vir de minha própria mão, ao invés da mão alheia!
Mas se Boécio teve o consolo da Filosofia em pessoa para aliviar-lhe as últimas horas de vida, a Poesia não deixa meu lado nem por um minuto: embalando-me em suas asas ela transporta-me aos mais distantes e exóticos lugares, onde a mortandade que observo de minha janela não pode estender sua pútrida mão. E como poesia e embriaguez são quase sinônimas, meu passaporte na grande maioria das vezes é uma taça de vinho.
De uma das paredes pende teu retrato, minha Anastasia; sempre velando pelo mais indigno de teus servos! Quantas vezes não beijei o empoeirado vidro que a protege, julgando ser capaz de rompê-lo a fim de expirar de amores em meio a teus seios de alabastro! Que é uma vida sem amor, vinho e poesia fora as sempiternas trevas do vácuo da imatéria?
E foi num dia como este, perdido em meio aos mais lânguidos devaneios contigo, que senti formar-se em minha mente o embrião de um novo mundo – um conto, ditado a mim como concebido pelo Amor e tendo a ti como musa, e que, longe de publicá-lo ambicionando fama e fortuna (que são tais coisas fora ar e vaidade?), redijo-o com a mera finalidade de entreter a ti.
Dê-me tua mão, irmã de minha alma, e embarquemos na caravana da rainha Mab rumo aos domínios da fantasia, onde reina ela suprema!
[Continua no Cap. II]