A INSTIGANTE ARTE DA VIDA - PARTE X (SURPRESAS)

(Novela em 14 partes)

A rua Jacuí estava surpreendentemente tranquila. Poucos carros, poucos transeuntes. Calmaria total; fato este que, aliado à velocidade nada gentil que Diana impôs ao veículo, diminuiu sobremaneira o tempo do percurso. Pois bem, carro estacionado em frente ao edifício, três ou quatro crianças brincando aos gritos no passeio, um vento bom soprando rosto e cabelos, emoção aflorada em arrepios sobre a pele e nas batidas cardíacas... Ela subiu.

A campainha soou. Renato não acreditou no que viu diante dele! Estaria louco? A visão turvou-se. As pernas tremiam, ameaçando levá-lo ao chão. Voz e ar presos na garganta. O tempo parou! Sentia um misto de angústia e delícia que jamais conseguiria explicar! Lágrimas absolutas fluíram sem permissão... Sim, era ela, mais linda e exuberante do que nunca! Toda aquela sensação deliciosa e extraordinária do início do romance voltando à tona. Um idílio... Sim, o mundo novamente se converteu em grãos minúsculos. E eles aspiraram o mundo em grãos. E se respiravam, alheios ao nada que os rodeava. Atônito, com dificuldade sobre-humana, balbuciou:

- Não posso acreditar!

E ela, com voz trêmula:

- Desculpe-me por vir. Mas a saudade que eu sentia era insuportável!

Renato também estava louco de saudade. Silenciou-se. Estava boquiaberto, deliciosamente surpreso. Ela prosseguiu:

- Nunca o esqueci. Nem por um minuto!

Ele ainda em silêncio.

- Posso entrar?

E só após alguns segundos:

- Claro! Entre!

Diana logo avistou o quadro, que ficava de frente para a porta. A princípio, um impacto. Um maravilhoso impacto. Ao se ver tão linda, tão serena, estampada na tela imensa, seus olhos lacrimejaram, numa mescla de satisfação e nostalgia. Sentiu um frescor suave e agradável a acariciar-lhe o ego, pois ali, bem diante dela, achava-se, exposta em cores, a confirmação de sua importância na vida do artista. Mas resolveu não mencionar nada sobre o que via, mostrou-se indiferente. Meio sem saber o que dizer, indagou-o:

- E sua arte?

Renato, cujos pensamentos se encontravam a quilômetros de distância do mundo racional, sussurrou:

- Não diga mais nada...

Aproximou-se devagar, meio titubeante, tocou em seu rosto e beijou-a, rendendo-se ao encanto e delícia daquela presença. Diana podia sentir, além da audição, sua respiração descompassada. Envolveram-se em afagos e declarações, como se tomados por um passe de mágica. E o dia inteiro aconteceu...

E ao retornarem da hipnose de amor:

- Seria bom que fosse embora, Diana.

- Mas há muito por dizer.

- Não há nada a dizer.

- Posso procurá-lo em outra oportunidade?

- Não.

- Mas por quê?

- Você é uma mulher casada.

- Meu casamento foi um erro. Aliás, conhecer Celso foi um erro.

- Creio que não pensava assim antes de se casar, quando ainda estava comigo.

- Renato, eu nunca o traí!

- Não faça assim. Não comprometa o prazer deste momento.

- Por que não acredita em mim? Por que tanta certeza quanto a minha culpa?

Levantando-se da cama, Renato dirigiu-se à escrivaninha. Apanhou um envelope na gaveta e aproximou-se novamente de Diana. Oferecendo-lhe o tal envelope, disse:

- Veja isto.

Um tanto espantada e curiosa, ela o abriu. Os belos olhos brilhantes denunciavam as tamanhas surpresa e indignação que sentia a medida em que conhecia o conteúdo. Cinco fotos suas em companhia de Celso no scotch bar, sendo que três delas apresentavam um carinhoso beijo na boca, além de um bilhete contendo o endereço do local e a data do que seria o próximo encontro. A letra era de Celso! E aí, ela entendeu tudo. Lembrando-se do instante em que aconteceu o fato, do foco de luz que sentira agredir-lhe a visão no momento do tal beijo roubado e ciente das circunstâncias totalmente opostas às que aquelas imagens insinuavam, desequilibrou-se:

- Isto foi uma cilada! As coisas não aconteceram assim! Ele me roubou o beijo! Você tem que acreditar!

Ele também se exaltou:

- É tudo evidente demais! Você já o conhecia há tempos e nunca mencionou nada a respeito! Ficou estranha, dispersa, como se ensaiasse a forma menos dura de me contar tudo!

- Sim, reconheço que errei em não lhe falar sobre ele, sobre suas intenções para comigo, mas quis simplesmente poupá-lo de preocupações desnecessárias!

- Então, por que prolongou o problema, continuando a sair com ele?

- Acreditava que Celso poderia ser um bom amigo, que toda aquela paixão não passava de um engano. Era agradável, simpático, prestativo...

- E rico.

- Por favor!

- Estou sendo realista. Você sempre não me cobrou isto?

- Você é o único amor da minha vida! Acredite em mim!

Renato queria acreditar, queria atirar-se nos braços da amada e apagar todos aqueles traumas recentes num piscar de olhos. Queria beijá-la, senti-la, protegê-la, ser protegido por ela. Voltar a se sentir vivo, realizado, respirar com gosto, amar sem culpas. Mas não podia, não conseguia. O medo imperava. Emanou, numa sequidão que doía:

- Vá embora.

Nossa bela mulher via-se dominada pela indignação. Celso agira como legítimo canalha, esfacelara sua relação com Renato. Ele mostrou-se assustadoramente maquiavélico ao se valer de tanta confiança, tanta consideração para realizar seu capricho disfarçado de objetivo. Ao mesmo tempo, ela se culpava por ter se envolvido de forma tão tola na fantasia inconsequente de um homem que, por toda a infância, por toda a adolescência, fora poupado de males e ameaças, que jamais sentira os incômodos acarretados pela derrota. E pior, sequer poderia exteriorizar sua ira, pois assim, denunciaria o encontro com o artista. Ao deparar-se com ele, Celso, na sala de estar, sentiu-se como se diante de um verdadeiro criminoso, sentiu certo temor, estremeceu. Contudo, calou-se, tentando engolir a agitação das suas emoções quase incoercíveis, apesar de mal conseguir olhá-lo.

Quase dois meses se passaram. Sentindo algumas leves perturbações de saúde, ela procurou um médico. E aí, a grande surpresa:

- Parabéns, você está grávida!

Assentada sobre a cadeira macia do consultório, inclinou o tronco, apoiou os cotovelos nas pernas, levou as mãos à cabeça. Estava atônita! Com agrado e pânico simultâneos, não soube o que dizer, o que fazer. Naquela fase da sua vida não havia espaço para uma gravidez. O relacionamento conflitante com o marido, a destruição do verdadeiro amor e a dúvida quanto à paternidade... A criança nasceria num mundo viciado demais! Por outro lado, o sonho de ser mãe sempre a seduzira e de repente deparar-se com a concretização deste proporcionava-lhe uma inevitável alegria. E o médico:

- Percebo que se afligiu. Pois devo dizer-lhe que se quiser de fato ser mãe, esta será sua única chance. Você possui um mioma que compromete seriamente seu útero. Assim que der à luz, teremos que retirá-lo. Portanto, não será possível uma segunda gravidez.

- Como?

- Sim, infelizmente é o que ouviu.

Os olhos de Diana perderam o perseverante encanto. Eles fizeram transbordar em lágrimas a agonia que minava de suas entranhas. O médico continuou:

- O meu papel é expor os fatos, peço desculpa pela crueza com a qual o faço.

- Não se preocupe com isso.

- Além de tudo, você corre sérios riscos de perder a criança. Será minuciosamente acompanhada; terá que seguir com rigor as recomendações médicas até o final da gestação.

Ela se apavorou! Como se não bastassem as turbulentas circunstâncias emocionais e afetivas em que se achava, ainda teria que conviver com a realidade de uma deficiência orgânica. Na verdade, sequer passou por seus pensamentos a ideia de abortar, contudo a perturbava o fato de ser desprovida dessa possibilidade. Não se contentou com o primeiro diagnóstico, consultou vários outros especialistas, submeteu-se a outros inúmeros exames, mas tudo foi confirmado.

Passados alguns dias, Diana acabou por conformar-se com a doença; afinal, havia muito com o que se preocupar. A situação de maior gravidade – concluiu - era a condição desfavorável do seu casamento. Não queria que o filho nascesse em meio a tanta desarmonia e como a única responsável por aquela gravidez – assim se considerava – teria que fazer algo. Resolveu tentar por mais uma vez reaproximar-se do marido. Seria arrebatadora, definitiva; dissimularia a mágoa, a raiva, as intenções verdadeiras. Afastou por completo a hipótese de Renato ser o pai. Não, os acontecimentos não poderiam ser mais complexos. Encontrava-se no terceiro mês de gestação, logo deveria agir de imediato. Já era difícil disfarçar a alteração física, o ventre crescia, indiferente às circunstâncias.

Foi numa quarta-feira. Aproveitando-se da rara oportunidade de ter Celso em casa, ela aproximou-se, beijando-lhe “afetuosamente” a face direita. Ele se espantou. Ela o indagou:

- Não gostaria de ter um filho comigo?

- Talvez. Não tenho certeza. De qualquer forma, minha certeza não faria diferença, porque sou estéril.

- O que?

- Foi o que ouviu, sou estéril. Jamais poderei ser pai.

Diana acometeu-se de um pânico íntimo; íntimo e demasiadamente violento, que parecia envolvê-la em brasas! O rosto queimava, como se em contato direto com elas, os lábios tremiam ao ritmo acelerado do coração, os nervos tilintaram! Nem por um momento, quando da articulação do plano de reaproximação com o marido, considerara tal possibilidade. Não conseguindo conter seu abalo, esboçou um opaco “sinto muito” e em seguida retirou-se, alegando uma dor de cabeça repentina. Se levantou ou não suspeitas com tal atitude, uma vez que estavam em pleno diálogo de reconciliação, isso não importava. Não se achava em condições de dissimular-se mais.

E o tempo corria. Era implacável, indiferente, acelerado. Diana não poderia protelar a revelação. Seria o fim do casamento de ilusões. Seria demais para um homem como Celso assumir o filho de outrem. Pensou em fugir, simplesmente desaparecer. Procurar Renato, jamais. Não resistiria às prováveis – contudo justificáveis – ofensas. Mas acertadamente, concluiu que não resolveria seus problemas com uma fuga (e afinal, já seria a terceira). O mínimo que poderia fazer para resgatar parte da dignidade seria revelar sobre a gravidez a Celso. E assim o fez.

Esperando uma avalanche de humilhações, ela tratou de se armar com argumentos não menos duros em seus pensamentos. Iria expor tudo o que descobrira sobre as atitudes inescrupulosas do marido para separá-la de Renato e isso lhe traria até certo alívio. Não, não seria punida como a única vilã. Porém, surpreendeu-se:

- Não se preocupe, será muito interessante a chegada de uma criança para este apartamento. Isto é, caso queira que seja assim.

- Não posso acreditar! Então você aceita meu filho?

- Receberei a ele como sendo também meu.

- Você é formidável, surpreendentemente formidável!

Aliviada e prazenteira, lançou-se nos braços do homem, a demonstrar gratidão.

Decidiu então esforçar-se ao máximo para manter o casamento e tornar a vida mais agradável para ela, o marido e a criança. Quanto a Renato, jamais saberia sobre o filho, permaneceria livre para prosseguir na carreira de artista. Pôs-se a vigiar suas atitudes, palavras e reações, sempre no intuito de ser a mais dócil e compreensiva possível. Celso também fazia sua parte, acompanhando-a às frequentes consultas de pré-natal, concedendo-lhe maior atenção; enfim, agindo como um legítimo marido. Aos poucos, ambos iam concretizando o casamento, conferindo-lhe características fundamentais: companheirismo e respeito mútuos. As circunstâncias achavam-se em ponto ideal, dentro dos limites do permissível. Na verdade, Diana perdia definitivamente Renato, mas resgatava a amizade de Celso. E aquele que destruíra seu relacionamento com o artista, que dera termo à fase mais feliz de sua vida? Onde estaria? Insistia nos questionamentos, não havia como negar que tal oscilação de condutas era no mínimo intrigante. Não, não podia mais se conter e durante um dos passeios com o marido, lançou a faísca:

- Por que agiu de forma tão ardilosa para me separar de Renato?

Ele não demonstrou o menor embaraço diante da pergunta. E com o mesmo ar sereno do minuto anterior, respondeu:

- Queria você e sabia que mais dia menos dia, eu iria conseguir. Apenas acelerei os acontecimentos. Prefiro que os sofrimentos e entraves venham todos de uma vez, que não gotejem ao longo dos dias rastejantes. Como uma grande tempestade, que cai como se rasgasse o céu, destrói o que tem para destruir e se vai, tão repentinamente quanto veio. O que nós vivíamos naquele momento era como as chuvas de janeiro, que apesar de fracas, são ininterruptas e atravessam dias e noites provocando um desmoronamento, um deslizamento de cada vez.

- Mas você foi vil!

- Fiz o que fiz por amor, e isto me redime.

Diana achou prudente mudar de assunto...

Ela já se encontrava na vigésima sétima, ou vigésima oitava semana de gravidez. Seguindo a linha de salvadora do matrimônio que assumira, resolveu fazer uma surpresa ao marido. Era uma tarde linda! Céu azul, sol ameno iluminando de dourado a terra e suas coisas. Muitas flores nos jardins e nas floriculturas, primavera! Perfeito cenário romântico! Apanhou as chaves do carro e rumou-se ao clube, onde de certo o encontraria jogando tênis. De certa forma, deixava-se levar na ilusão de realmente estar apaixonada por aquele homem. Era mais cômodo, mais sereno, seu filho nasceria num contexto mais convencional.

Ela estacionou o carro e entrou, com um botão de rosa na mão e ares de tranquilidade. Estava muito bem! Ao se aproximar da quadra de tênis, sentiu um tremendo abalo! Recuou! Ficou imóvel! Eis que se deparou com uma inacreditável surpresa! Uma surpresa terrível que mudaria de forma drástica os rumos de sua vida. Sentiu-se tonta. As pernas tremeram, quase lançando-a ao chão. Os lábios se agitaram com violência, ficaram dormentes e secos. Os dentes rangeram, a visão se apagou, tudo escureceu, como se uma imensa cratera se abrisse a tentar engoli-la!

É que Celso, agitado e gesticulando muito, conversava nada mais, nada menos que com Virgílio! Sim, com Virgílio! Falavam num tom alterado; tão alterado que a mulher, embora assustada e sentindo dores provocadas pelas contrações que se precipitavam, conseguiu ouvir:

- Virgílio, eu não suporto mais esta situação! O que combinamos, eu já cumpri. Consegui afastá-la de Renato, forjamos o casamento, mas agora não dá mais! As coisas estão tomando um rumo sem volta! Quero resgatar minha liberdade.

- Não pode reclamar; foi e está sendo bem pago.

- Eu repito: já cumpri o que negociamos.

- Espere a criança nascer. Depois você se separa. Eu já planejei todos os detalhes.

- Eu não sou o pai dessa criança! Não entendo porque ter que esperá-la nascer!

- Por isso mesmo, por você não ser o pai. Aliás, não deveria ter revelado sua impossibilidade a ela. Separando-se agora, a primeira atitude dessa mulher será procurar Renato. É só por mais alguns dias; um mês, ou dois no máximo. Depois do parto, vocês irão para a Austrália e aí, jamais ela encontrará o caminho de volta...

(Risos).

- Não sei, sinto pena dela. É uma mulher fascinante, não merece isso!

- Eu lhe pago mais quarenta mil dólares! Não tem nada a perder. Afinal, está vivendo num nível econômico que nunca foi o seu, cercado de regalias. Sei que gosta disso, sempre gostou.

- Todos os mortais gostam disso, sempre gostaram.

- Que seja.

- Mais cinquenta mil...

- Tudo bem.

De repente, um grito se fez ouvir. Diana caiu, desfalecida. Virgílio e Celso, depois de hesitarem por alguns segundos espantados com o que viam, correram para socorrê-la.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 04/10/2010
Código do texto: T2536591
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