A INSTIGANTE ARTE DA VIDA - PARTE VII (OBSESSÃO)

(Novela em 14 partes)

Era uma terça-feira. Diana achava-se sozinha em casa. Preparava com o entusiasmo vigoroso de sempre o almoço de Renato, quando a campainha soou. Ao atender, deparou-se com a figura imponente de Virgílio (ele nunca permitia se fazer anunciar com antecedência). Um tanto espantada, convidou-o a entrar e assentar-se; porém só foi aceito o primeiro convite:

- Serei breve. Quero que saia da vida de Renato!

Acometendo-se de um calor súbito e intenso, que lhe subia feroz pelo corpo até instalar-se em definitivo nas faces, com voz trêmula e pausada respondeu:

- Por que haveria de atendê-lo?

- Sei que já penou bastante e ambiciona uma posição mais digna na vida. Pois bem, proporcionar-lhe-ei todo o conforto do mundo, todo o dinheiro, tudo o que desejar! Roupas, joias, viagens, luxos, respeito, vingança contra seus malfeitores, tudo! Poderá finalmente sentir-se como um ser de fato, que ocupa espaço na terra! Para tanto, basta que deixe meu primo em paz!

- Não compreendo porque tanta resistência a me aceitar! Faço Renato feliz e deveria sentir-se também feliz por isso, pela forma como demonstra gostar dele.

- Você está prejudicando sua carreira, será que não percebe? Renato é um artista e como todos eles, tem o sucesso como meta primordial de vida! Para no entanto alcançá-lo, necessita de uma dedicação sobre-humana ao trabalho! Ele sonha com o reconhecimento internacional. Você sequer é capaz de imaginar o que significa um sonho desses para um artista plástico e ainda mais, o quanto é árduo o caminho para realizá-lo. Para tentar chegar onde almeja, ele há de se restringir de forma exclusiva e incondicional à sua arte. Em resumo, o sucesso é o que representa felicidade plena para meu amigo e não essa paixão frívola e ridícula, a qual vocês pensam viver. Quero que ele vença, que se projete na carreira! Ele nasceu para o egrégio, para o nobre! E você está impedindo o que para mim sempre se manifestou como fato irrefutável. Não é mulher para ele, não possui estrutura, não possui o requinte necessário! Falta-lhe raiz, entende? Bem, mas isso não vem ao caso. Não estou aqui para traçar suas limitações. E então, aceita ou não minha proposta?

- Creio que os motivos de sua resistência são outros...

- O que quer dizer?

- Isso também não vem ao caso. Independente de qualquer coisa, frente ao absurdo que acabo de ouvir, peço que se retire!

- Pois muito bem. Eu tentei.

E saiu, com sua ira costumeira.

Ela permaneceu diante da porta, imóvel, por alguns minutos. Em seguida, depois de trancá-la com todas as voltas possíveis da chave na fechadura - como se tal atitude pudesse protegê-la da existência de Virgílio - atirou-se no sofá, mal acreditando no que acabava de ouvir. Talvez teria mesmo que abrir mão de seu sentimento, pelo bem do homem que amava.

Paralelamente, preocupava-se com a raiva incontida daquele que acabava de sair. Poderoso que era, disporia de várias formas de prejudicá-los. Poderia, num estalar de dedos, arruinar, exterminar a carreira do artista! Com sua admirável eloquência, e se conseguisse convencer Renato a fazer uma escolha entre a pintura e ela? E se ele, Renato, escolhesse a pintura?

Muitos hão de interpretar essa última preocupação de Diana como sendo um tanto egoísta, até mesmo ignóbil! De fato, não combina com a nobreza dos pensamentos apaixonados dos quais se tem notícia. E o desprendimento? E a felicidade do outro acima de tudo? Os conceitos dos sentimentos humanos apresentados sob o encanto das letras são mesmo assim, definitivos e inflexíveis. Mas quando transgridem do caráter meramente conceitual e passam a ser vividos, eles pulsam e se transformam, e se confundem entre si; deixam de ser corretos para serem reais como os mortais que os sentem.

Superado o episódio, reiniciaram a vida poética a dois. O amor que sentiam era inabalável, nada podia detê-lo. Nem mesmo Virgílio, que por sinal havia desaparecido desde que Renato lhe proibiu interferências pessoais e financeiras, fato ocorrido antes da visita a Diana. E seguiam felizes, imunes às ameaças de toda sorte que teimavam em surgir.

Diana, não suportando mais permanecer em silêncio sobre a fatídica visita, contou tudo ao amado. Ao ouvir o extremo absurdo, ele levantou-se imediatamente, apanhou seus documentos e dirigiu-se à casa de Virgílio, tomado por uma ira incontida! Ela tentou impedi-lo, mas em vão.

Ele nunca havia realizado o trajeto entre os dois endereços em tão pouco tempo! Os sinais de trânsito iam se precipitando diante dos seus olhos e se desmanchando, como se fossem nuvens. É, estava colérico!

Lá chegando (ele tinha as chaves da cobertura de seu antigo tutor), encontrou-o a deleitar-se num perfumado e farto banho de espuma.

- Renato! Que bela visita! Suponho que já tenha se libertado de sua paixão tardiamente adolescente.

E liberou, através da bela arcada, um sorriso largo, de puro regozijo! Mas Renato logo tratou de desencantá-lo:

- Quero que nunca mais me procure, que se esqueça definitivamente da minha existência, como eu, a partir deste momento, o farei com relação à sua. Como pode ser tão sujo, tão asqueroso! Bicho, porco imundo! Verme!

Virgílio levantou-se desequilibrado, pálpebras e queixo a tremerem de maneira incontrolável, numa autêntica demonstração de espanto e desespero! De repente, tudo se confundiu em sua cabeça, como se o cérebro lhe estrangulasse emoções e sentidos. Desejou, sem mesmo se dar conta, a morte, o desaparecimento total. Os sentidos se traíam mutuamente, não se concatenavam! Diante dos olhos uma escuridão aterrorizante! Na garganta, uma imensa esfera de chumbo impedindo-lhe voz e respiração; e nos ouvidos, algo como se um número incalculável de bate-estacas estrondando ao mesmo tempo aquelas palavras: “Porco... Sujo... Asqueroso... Verme...”.

- Renato, não estou entendendo! O que houve?

- Não seja cínico!

E o outro deixou-se levar pelo pânico ao conscientizar-se do que acontecia, começando a gritar como um louco:

- Quer que eu desapareça da sua vida? Pois bem, eu acatarei! Eu desaparecerei da sua vida e da sua carreira! É isso que você quer? Quer se acabar pelos anos que lhe restam a implorar que pessoas sem estirpe lancem olhares mortos para suas obras? Sabe que sem mim, estará arruinado! Não haverá patrocínio, não haverá marchand, tampouco galerias para exposições! Você nunca soube viver sozinho e se acha que aquela coisa insignificante irá conseguir tocá-lo para frente, engana-se!

Renato gritou ainda mais intensamente:

- Não admito que se refira à Diana dessa forma!

- Falo para o mundo inteiro ouvir! Ela não presta para nada, ouviu bem? Para nada!

E o artista, não se contendo, lançou-lhe um forte soco de fúria, jogando-o novamente na banheira! Virgílio levantou-se novamente, apesar da dificuldade em firmar os pés sobre o fundo escorregadio do recipiente. Com a mão direita a esfregar forte o maxilar que doía, tentou controlar-se:

- Renato, não é justo que abandone uma amizade de anos por uma paixão inconsequente! Por favor!

- Você vive como se estivesse num leilão, num constante e enfadonho leilão onde ganha quem oferece o maior lance. E quer sempre arrematar tudo! Talvez em seu mundo frio e vil seja mesmo assim! Posso até concordar que todas as coisas na vida têm preços, mas que nem sempre são pagos a partir de um mero destacar de cheque. Existem trocas de sentimentos bons, Virgílio, que estão bem acima das negociatas sórdidas através das quais você ganha a vida. Mas você foi privado da graça de conhecê-los, de vivenciá-los, pobre diabo! Na verdade, é merecedor de piedade, mas só consigo sentir ódio. Sempre percebi sua deficiência moral, mas nunca pensei que pudesse ir tão longe! Você é desprezível!

Virgílio prostrou-se de joelhos diante dele, atracando-se em suas pernas e despojando-se de todo o brio e toda a empáfia que lhe eram característicos:

- Pelo amor de Deus, Renato! Não faça isso! Eu o imploro! Pode me bater! Pode me cuspir! Pode pisar em minhas mãos, em meu rosto, em meu corpo todo, mas não faça isso! Eu posso resistir a tudo, tudo mesmo; menos ao seu desprezo!

Renato, indiferente à atitude doentia e deplorável do primo, para livrar-se das mãos que impediam seus movimentos, chutou-lhe violentamente o peito e saiu, ainda tomado pela fúria, aos passos fortes pela exagerada extensão da residência!

O solitário protetor levantou-se atônito, colocando-se a andar de um lado para outro, completamente transtornado, recusando-se a acreditar no que acabava de acontecer. Desolado, chorava como uma criança louca! Jogou-se sobre o tapete da sala. Corpo nu, repleto de espuma, carente e desamparado... Encolhia-se, esticava-se, enrolava-se no tapete, como uma serpente agonizante! Pôs-se a atirar cristais e porcelanas contra móveis e espelhos do recinto, entre berros de desespero e impulsos insanos! Sentia-se sem forças para reerguer-se, para reorganizar suas ideias, sentia-se em cacos, como os que quebrava! Pedia a morte! Toda uma juventude, toda uma vida de dedicação total concluída de maneira tão estúpida! Recordou-se de quando recebera a tutela de Renato, da alegria que sentira ao encontrar objetivo para a vida solitária e vazia, das demonstrações de respeito e amizade que recebera ao longo dos anos, de tudo o que passaram juntos! Renato era para ele o único amigo, o irmão, o filho, a família; o seu prazer, a sua própria existência!

Renato, ainda tenso e irritado, relatou todo o ocorrido à Diana. Esta afligiu-se de imediato. Embora bem mais jovem, considerava os fatos inevitáveis da vida com maior realismo, sabia que haveria mudanças bruscas na carreira do artista sem o apoio de Virgílio. O obstinado protetor negociava as vendas dos quadros mais caros em seu círculo social, divulgando o nome de Renato para os principais apreciadores de artes plásticas do país. E, por capricho ou não, sempre impedia o acesso direto do pintor aos compradores. Queria ser o centro de tudo e de fato o era! Para ser mais exato, viver de arte sem a influência e o prestígio do todo poderoso tornar-se-ia quase impossível!

Mas Renato não pensava da mesma forma. Sentia-se forte, auto-suficiente e como se desperto de um sono aflitivo e prolixo. Encontrava-se repleto de ânimo para lutar, para impor o seu trabalho; nada o preocupava, nada o amedrontava. Sentia-se finalmente pronto para assumir sua vida! É, o entusiasmo detém a faculdade de colorir todas as coisas que se precipitam contra os sentidos e nervos, além de dissolver obstáculos como se dissolve grãos de açúcar... Todavia, como as coisas não são tão simples e belas como se deseja, na medida que o tempo se passava, ele ia percebendo que a batalha seria mais árdua do que poderia imaginar. A rotina se transformou de maneira extremamente agressiva! Os quadros que em até pouco tempo atrás eram vendidos sem o menor esforço, acumulavam-se em seu atelier improvisado. Com as obras amparadas sob os braços, rondava de galeria em galeria, de sol a chuva, com perseverante bravura, mas sem nada conseguir. E a comida ia sumindo da despensa...

Diana viu-se obrigada a sair de seu ninho poético a fim de procurar emprego. Alguns intermináveis meses decorreram... Solas de sapatos e calorias consumidas... Enfim, o alcance do modesto objetivo. Não foi fácil! Contudo, por mais uma vez, valeu-se de sua beleza, ocupando uma vaga de balconista numa perfumaria, localizada na Av. Afonso Pena. Encerrava-se então a fase estrelar das duas vidas... Pés em terra firme, seguiram avante!

O combate duro e implacável dos dias estraçalhava, feito navalha, a poesia daquela relação, dispersando seus versos em minúsculos cacos. Mas apesar das circunstâncias nada aprazíveis, o amor perdurava. De maneira mais concreta, mais madura (e por isso mais cruel), porém ainda amor. O cansaço intenso e as incontáveis decepções iam, aos poucos, invadindo com ousadia suas existências, desiludindo-os mais e mais quanto às possibilidades de felicidade inatingível. Corpos doridos, esperanças frustradas e carências materiais emaranhados entre si construíam o cotidiano do casal. Poucas falas, poucos olhares, pouco afeto. Mas muita necessidade de um pelo outro...

E os dias rolavam rápidos, como se formassem uma gigantesca esfera de neve a engolir a todos com gana...

(Continua...)