A INSTIGANTE ARTE DA VIDA - PARTE V (A MALABARISTA)

(Novela em 14 partes)

Decorreram seis prolixos meses de angústia e carência extremas. Depois de ter passado por incontáveis privações, Diana conseguiu trabalho e hospedagem num bar, no centro da cidade.

Pedro, o futuro patrão, homem de feições rudes, gordo, de fartos e longos pelos espalhados em peito e braços e concentrados na barba grisalha, após observá-la e ouvi-la por horas, calado, inerte, de olhos e musculatura facial paralisados, constatou que por detrás daquela roupa velha, quase em trapos, havia uma linda e esmerada mulher e resolveu conceder-lhe a vaga de cozinheira, faxineira, balconista e garçonete. Mandou que tomasse um bom banho e fez-lhe um adiantamento de salário para que comprasse algumas peças de roupa.

O emprego acabou por proporcionar-lhe uma verdadeira metamorfose de caráter. Aprendeu a dissimular-se, a adaptar-se às mais diversas e embaraçosas vicissitudes. O fato de conviver com os frequentadores do lugar, muitos vulgares ou violentos demais, desestruturados social e emocionalmente, havia lhe concedido uma total flexibilidade de atitudes. Para se esquivar, por exemplo, das investidas, das insinuações eróticas que recebia a todo momento, criou um verdadeiro arsenal de saídas estratégicas. Quanto aos sonhos de realização pessoal e financeira num universo mais ameno, estes se dispersaram e sumiram, um a um, em cada bucha de maconha, em cada murro de homem no olho, na boca, em cada cópula bêbada, nojenta e vazia.

Possuía uma pequena amiga, Cátia, uma menina de rua que se envolvera com ela pelos lanches diários que recebia quando de suas passagens, sempre rápidas, pela porta do bar. Conversavam bastante. E até brincavam um pouco. Na verdade, trocavam experiências de vida em igualdade de condições. Muitas vezes, invertiam os papéis, as tendências lógicas. É que Diana, quando em sua companhia, voltava a flutuar na magia singela da infância e a menina, por sua vez, acelerava-se, rompia a barreira cronológica da vida, apresentando ideias, conceitos e perspectivas com a amargura de uma mulher espancada pela realidade.

Certa vez, em um de seus diálogos, a bela amiga indagou à menina:

- Por que você nunca fala dos seus pais?

E a resposta fez-lhe engasgar:

- Pai eu não tenho. E minha mãe não se importa comigo, ela não gosta de mim. Só quer o dinheiro que consigo na rua. Não sabe o que eu passo pra conseguir, das surras que eu levo dos outros meninos e da polícia. Minha mãe só sabe beber cachaça e trepar. Ainda ontem, ela apagou o cigarro na minha mão só porque eu entrei em casa de repente, sem bater na porta, e peguei ela trepando com um moço. Veja!

A menina abriu a mão direita e mostrou à amiga, cujos olhos lacrimejaram diante da marca da queimadura. A jovem sentiu na alma a dor que aquela estupidez certamente causou.

Mas a amizade não permaneceu por muito tempo. Eis que numa bela manhã de domingo, Diana recebeu a notícia de que Cátia havia aparecido morta, boiando sobre as águas imundas do rio Arrudas...

O tempo passava inalterado. Até que certa vez, ansiosa para concluir suas obrigações e se recolher, ela lavava alguns copos na precária cozinha do bar, quando Pedro, após fechar as portas, aproximou-se e sussurrou, quase ao seu ouvido:

- De hoje não passa, quero transar com você!

Percebendo o grau de embriaguez em que se encontrava o homem e já habituada a superar situações até mais difíceis, não se abalou. Mas ele falava sério! Subitamente, deteu-a nos braços, soltou-lhe os cabelos e pôs-se a acariciar-lhe o corpo com mãos e lábios. Ela apenas suspirou, não demonstrando a menor reação. Portou-se como uma estátua. Sabia que de nada adiantaria tentar enfrentá-lo, por pura desproporcionalidade física. Sem considerar que ainda correria o risco de perder o emprego que tanto custou a encontrar. Apesar de repugnada com os odores fortes de álcool e suor que dele exalavam, deixou-se à mercê de suas vontades.

A partir de então, episódios semelhantes aconteciam quase que diariamente e aos poucos, sem se dar conta, Diana foi se tornando propriedade de Pedro, algo assim como um instrumento de múltiplas utilidades, uma verdadeira escrava que se restringia a obedecer a comandos. Ele já não queria que ela se aproximasse do balcão, para que nenhum malandro a molestasse mais. Passava dia e noite se desdobrando entre as quatro paredes quentes da cozinha e as do quarto sombrio do patrão.

Contudo, a jovem bem sabia que não poderia resumir-se àquilo; as condições nas quais estava vivendo em quase nada se diferenciavam das que viveria em casa de Ana Lara (salvo as carências materiais). Do cerne dos seus sentimentos mais íntimos, surgiu novamente o desejo de ampliar-se, alastrar sua saga urbana, arriscar-se de novo, caminhar, conhecer novas coisas.

Foi numa tarde de terça. Pedro não se encontrava no bar. Ela então pediu a um freguês de sua confiança que assumisse o balcão por alguns minutos. Às pressas, apanhou os pertences, uma razoável quantia que conseguira juntar e partiu.

Mais uma vez perdida no tempo e no espaço, solitária e a vagar sem rumo pelas ruas...

Exausta, dirigiu-se ao Parque Municipal, um pulmão em pleno centro da cidade. Ver pessoas, muito verde, carrinhos de pipoca, pássaros, peixes e brinquedos poderia ser bom. O dia estava perfeito, a exibir o sol que brilhava pleno entre as nuvens e a reger a harmonia da vida com maestria.

Ficou horas sentada à beira de um lago. O olhar sublime se perdeu no tempo a acompanhar o movimento sutil das águas. Mas uma voz, a princípio distante, veio aos poucos adquirindo intensidade e acabou por quebrar o invólucro de sua viagem solitária:

- Posso assentar-me ao seu lado?

- Esteja à vontade, desde que não me importune.

- Apenas me aproximei porque percebi que não estava bem. Quis ajudar.

E Diana, lembrando-se das palavras de Ana Lara:

- Não há ajuda sem o interesse da troca.

- Percebo que a luz fascinante dos seus olhos na verdade esconde uma redoma de amargura!

Libertando-se do cárcere emocional e fitando-o com maior atenção, acalentou seus nervos com um prazer surpreendente que lhe surgiu do íntimo. Conseguiu captar, através daqueles olhos, um misto inexplicável de sinceridade e ternura. Uma sensação prazerosa lhe minou da alma. Sem dúvida, ninguém jamais lhe proporcionara tamanho contentamento! E o tempo resolveu parar para a jovem, que tinha então os olhos fixos naqueles outros olhos verdes e brilhantes. E dominada pelo encanto, levou as mãos à face do homem, acariciando-lhe com delicadeza os pelos curtos e dourados da barba tão impecavelmente cultivada. E segredou:

- Você me faz bem...

Ele nada respondeu, estava também maravilhado com a beleza e a espontaneidade da jovem. Permanecia inerte, acolhendo as carícias e apreciando cada minúcia daqueles traços privilegiados.

Alguns minutos se fizeram passar. Finalmente, Diana, como se despertasse de um sonho dourado, pôs termo ao silêncio imposto pelas circunstâncias:

- Meu Deus, queira me perdoar!

- Você seguiu seus impulsos. É sublime, é raro! As pessoas costumam retrair vontades e sentimentos se estes não forem convencionais.

E ela, como se numa alucinação, deliciava-se com a voz grave e delicada que emanava dos lábios perfeitos. Olhar límpido, tranquilo, braços fortes e talhe ideal. Justificou-se:

- De fato, desde que cheguei a esta cidade, jamais um homem me proporcionou tamanho bem-estar. Qual é o seu nome?

- Renato.

- Eu sou Diana.

- Bela Diana...

Ela sorriu. E ele:

- Sim, você é linda! A mulher mais linda que já vi...

- Bondade sua. De qualquer forma, você também é lindo!

- É, eu sei.

Eles sorriram. Sentiam-se felizes.

E ele:

- Mas você não é de BH, pelo que falou há pouco. De onde veio?

Entre sorrisos e algumas lágrimas que teimaram em surgir, ela contou sua história a Renato, que a ouvia atento e solidário. E ao final do relato, ele não teve como pronunciar sequer um monossílabo de conforto ou ânimo. Só após alguns segundos a fitá-la com expressões de indignação e inevitável piedade, pôde dizer algo. Num ímpeto:

- Quer morar comigo?

- Você mal me conhece!

- É como se já nos conhecêssemos há anos!

- Você é mesmo especial...

Diana desviou-se dele, levantou-se, colocou-se diante do lago, com as mãos abrigadas nos bolsos do jeans. Tudo o que havia passado deveu-se ao fato de ter confiado numa desconhecida; numa desconhecida tão solidária e gentil quanto aquele homem. Um homem cujas feições, atitudes e intenções transmitiam ao seu instinto sinais de sinceridade, de confiabilidade, embora sua razão impusesse cautelas. O desejo e o medo se entrelaçaram em torno da jovem num combate desvairado, subjugando-a às suas extremas forças. Pôs-se então a correr como uma louca, fugindo de Renato e de si própria. Ele bem que tentou alcançá-la, mas foi em vão...

Já era quase meio dia. Ela precisava de um lugar onde pudesse descansar e comer alguma coisa. Seguindo em direção à rodoviária, encontrou uma modesta pensão, cujo preço era a princípio compatível com suas possibilidades. Mal chegando ao quarto, desmoronou-se na cama, só acordando à madrugada. Debruçou-se na janela, a observar os acontecimentos comuns ao horário: veículos em alta velocidade, namoros ousados nas marquises, bêbados à espera de coletivos, etc. Havia até um homem que praticava felação num policial, dentro da guarita!

Não conseguia afugentar Renato de seus pensamentos, ele pairava como uma aura aprazível em torno dos mesmos. Ainda podia ouvir o tom macio de sua voz e sentir seu cheiro marcante. Deixou suas lembranças vagarem pelo momento mágico que passara com ele e apanhou-se sorrindo, sentindo um alívio radiante, que lhe saía por todos os poros! Lembrou-se de cada palavra, de cada gesto, de cada olhar, envolvida numa sensação plena de delícia! Poucas horas valeram por uma vida inteira de paz! Sentia-se mais significante, mas imprescindível, mais concreta. E sorria, sorria muito...

Mas repentinamente, uma onda de realismo a arrebatou. Tratava-se de um desconhecido. Não podia deixar que todas aquelas emoções a dominassem; não era prudente se iludir de tal forma. E punia-se ao se ver tão vulnerável, apesar de todo o sofrimento por que passara. Não, não havia espaço em sua vida para sentimentos assim, tão nobres. Trataria de anulá-los de imediato!

Porém, não se dominava. Não suportava mais o ardor da saudade, queria vê-lo novamente. Nem bem amanheceu e Diana já estava lá, no mesmo local do dia anterior, à espera de Renato. Pensou por várias vezes em recuar, mas não, não era possível. Aflita, esperou por horas a fio, mal se contendo. A angústia apossou-se dela quando da conclusão de que ele não apareceria. Pensou: todo o encanto que sentira na manhã anterior não fora recíproco, talvez ele sequer se lembrasse dela. Culpava-se por ter sido tão pretensiosa. Não dissimulando a decepção, retirou-se do local.

Dois meses se passaram e Renato insistia no percurso por seus pensamentos. Foi então que resolveu voltar ao Parque Municipal “exclusivamente” para espairecer suas ideias à beira daquele lago. Essa era, pelo menos, a intenção que impunha a si. Mas é óbvio que a possibilidade de rever o amado teimava em saltitar-lhe as ideias .

Lá chegando – com um pacote de pipocas para os peixes - sentou-se. Fitou as águas. Alguns segundos... Decolou. E então:

- Diana!

Reconhecendo a voz, olhou resplendorosa! Sim, era Renato!

- Você? Não pensei em encontrá-lo mais.

- Pois eu estava certo do contrário.

E Diana não conteve o tom de cobrança:

- Voltei no dia seguinte. Você não veio.

E Renato, sorrindo:

- Você fugiu de mim. Não pensei em reencontrá-la no dia seguinte. Estava certo de que voltaria, mas não tão cedo.

- Como pôde saber?

- Seu olhar me confidenciou. Na verdade, venho quase todos os dias aqui. Às vezes fico do nascer ao pôr do sol a esperar por você. E não exagero!

Silenciaram-se por alguns instantes, por plena falta do que dizer. Olhavam-se, veneravam-se mútua e profundamente. Era como se o mundo existisse em função de ambos. Era como se aspirassem e respirassem o mundo em grãos, alheios aos arredores vazios. Eles eram os detentores do tempo, do sol, da vida! A própria existência se curvava diante do belo casal! O momento era sublime! Emoção, delírio, chama ardente!

Foi Diana quem quebrou o silêncio:

- Estava enlouquecida de saudade!

- Eu também...

Aproximaram-se e beijaram-se, como se saciando uma sede de séculos. Acariciavam-se com ternura... Cabelos, faces, lábios e peles à mercê de toques apaixonados. Prazer na plenitude...

Entre beijos e afagos, conversaram muito. Depois, voltaram a falar de ambos. E ele:

- Quero que vá morar comigo.

- Apesar do meu sentimento, não sei nada sobre você. É loucura!

- Loucura é você não ir. Já perdemos tempo demais, quero que fiquemos juntos. É você, sei que é você a mulher da minha vida. Está resolvido, você vai.

- Vou.

Diante da confirmação da jovem, Renato portou-se como um menino, pulando de alegria e beijando-lhe enlevado as faces. Ali se fazia presente a solução para a angústia que o corroía mais a cada passar de horas. Depois da euforia, resolveram ir embora, pois já escurecia, eram quase seis da tarde. Passaram na pensão, para que Diana apanhasse suas coisas e acertasse as contas. Em seguida, dirigiram-se a um restaurante, nas proximidades. Então acomodados numa mesa discreta localizada ao fundo, à meia luz, mais carícias e declarações envoltas em êxtase:

- Quero apagar em sua memória todo o sofrimento. Sinto-me responsável por você. É estranho, é deliciosamente estranho. Essa responsabilidade não incomoda, não me pesa os ombros. Sinto um prazer que jamais senti!

- Pois saiba que me sinto dona da felicidade neste momento! Mas foi tudo tão rápido, tão incrível! Não sei nada sobre você! Quero conhecer mais sobre este homem que me devolveu a vida, que se apropriou de mim sem se preocupar com o meu consentimento, cujo olhar me entontece, cujos mãos e braços me queimam feito brasa! Quem é você?

Renato suspirou, satisfeitíssimo com o que acabava de ouvir. Seu olhar exprimia uma certa malícia natural, um instinto humano de orgulho, de vaidade. Aproximou suas mãos às mãos de Diana, acariciando-as levemente com os dedos e o até então misterioso homem iniciou o relato de sua vida. Ela o ouvia atenta, entre um trago e outro de campari...

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 02/10/2010
Código do texto: T2533249
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