A INSTIGANTE ARTE DA VIDA - PARTE II (A ACOLHIDA)

(Novela em 14 partes)

Belo Horizonte. Manhã.

Carros circulavam enlouquecidos pelas ruas, edifícios gigantescos sufocavam o espaço e encarceravam o ar agonizante, sorrindo sarcasticamente para a extensão que dominavam. Lojas, carros, sinais de trânsito, buzinas, anúncios e pessoas, muitas pessoas a andarem apressadas de um lado para outro, como se numa busca urgentíssima e secreta.

E lá estava Diana, sentada num dos bancos da praça Rio Branco, observando estática, meio que em choque, as labaredas de agonia que se alastravam sobre o local. Sim, estava só, completamente só em meio àquela multidão. Alguns minutos mais de estado estático. Renovando as forças, levantou-se e prosseguiu, à procura de uma pousada nas proximidades. Mas surpreendeu-se com os preços exorbitantes, concluindo que seu dinheiro não seria suficiente para sequer uma diária, sequer um banho. Estava à mercê da sorte!

Imaginava algo de esplendoroso e ao se ver diante de tal realidade, uma onda de pânico a envolveu e quase lhe fez desistir de sua ousada e pretensiosa investida. Mas o arrependimento era inútil, não havia mais como voltar atrás. Pelo menos – pensava - as regras do jogo seriam mais definidas, acreditava que bem e mal não estariam tão próximos, a se confundirem, como acontecia em sua terra natal. Caso nada conseguisse, levaria consigo o alento do esforço, da luta intrépida pelo sucesso. Inferiu: sua vida começava, de fato, ali. E uma constelação de devaneios povoou seu íntimo!

Com postura imponente, apesar do sanduíche de mortadela que devorava avidamente, espantou os vestígios de auto-piedade e o pânico que quase a afogara deu lugar a um entusiasmo louco, revestido de esperança! Sorriu.

Levantou-se arrebatadamente e seguiu em direção à passarela da Lagoinha, com jeito cabreiro de quem realmente não sabe por onde pisa.

Muita sujeira, brados de vendedores ambulantes com feições indígenas disputando suas raízes milagrosas, exibindo cobras e lagartos (literalmente) para impressionar. Mendigos e maloqueiros jogando baralho e bebendo cachaça sob a passarela. Tráfego tumultuado de pessoas e veículos, lojas de móveis e roupas usados, peixarias, bares e bêbados, péssimos odores. Tudo a queimar sobre um sol de meio dia que brilhava torturante sobre o tradicional bairro da Lagoinha, antigo recanto de boemia da cidade.

Com passos lentos, atenta aos detalhes, Diana caminhava pela avenida Antônio Carlos, com gestos e olhares típicos de um sedento por novidades. Avistou a torre da Igreja Nossa Senhora da Conceição e resolveu dirigir-se até lá. Ao entrar, ajoelhou-se com extrema reverência e iniciou uma série de suplicantes e fastidiosas orações. Entre uma prece e outra, corria os olhos sobre cada minúcia do local. Os bancos, o piso impecavelmente limpo, o altar, imagens enormes, de cores e exuberâncias, com ares de lamentação e piedade, pratas, dourados, ostentações, os terços e suas senhoras... Era medieval! O “tom” do recinto remeteu-a a sua terra. Muita saudade, fios de lágrimas nos olhos. Sim, as igrejas são todas iguais. Algumas riquíssimas, outras paupérrimas, mas todas carregam em si o mesmo clima, o mesmo risco de se transitar no liame tênue entre dois extremos: a conscientização e a alienação.

Passados uns quinze ou vinte minutos, ela saiu novamente, a vagar sem destino pela rua Além Paraíba, não dominando sua ânsia inútil de alcançar o futuro que ia se revelando a cada instante. Curiosamente, as coisas e as pessoas, aos poucos, iam se tornando mais aceitáveis aos seus olhos e impressões. Afinal, não teria outra escolha, senão adaptar-se o mais rápido possível ao ritmo urbano.

Parou diante de um pequeno prédio cuja pintura, vítima da ação implacável do tempo, agredia a visão numa mistura fosca de cinza e marrom, já bem manchada pela poluição. A porta, bem estreita, de madeira resistente, apesar de visivelmente envelhecida, achava-se aberta e apresentava uma imensa escadaria de ardósia opaca e empoeirada, insinuando mostras de abandono ressaltadas pela iluminação precária. Resolveu subir.

Custosamente, vencia degrau por degrau. Parecia ser um hotel, mas não havia nenhuma placa indicativa na porta. Pairava naquele lugar um quê de lúgubre e misterioso que provocava arrepios! Indiferente às intuições e seguindo os impulsos, ela acelerou os passos. Ao concluir a subida, antes mesmo de fixar os pés na pequena sala que se fazia exibir à sua frente, deparou-se com uma senhora vigorosa, bem alta, aparentando uns cinquenta anos de idade pelas rugas que lhe escorriam insistentes sobre o rosto (apesar dos disfarces inúteis da maquiagem), de ar triste e grave, denunciando traços de amargura, gestos nobres, portadora de uma beleza europeia de cabelos dourados, pele rosada, olhos grandes e verdes, que a molestou:

- O que quer aqui?

Os tais olhos verdes emanavam faíscas que ardiam! Diana embaraçou-se com o tom seco da recepção. E respondeu, com voz embargada:

- Acabo de chegar do interior e... Procuro um local para ficar... Preciso encontrar trabalho...

Não se contendo, começou a chorar. A tal senhora, experiente, perspicaz, captando a boa índole da moça, tratou de tranquilizá-la:

- Calma, minha filha; não há por que se desesperar; vou ajudá-la. Dê-me sua bolsa e siga-me.

Diana, mais aliviada, obedeceu-lhe, falando com entusiasmo:

- Deus! Não sei como agradecer, senhora!

Esguia, solene, a mulher voltou-se para a jovem e aduziu com uma sequidão asfixiante:

- Você não tem motivos para fazê-lo, menina. Melhor, jamais agradeça por nada, pois existem apenas trocas; trocas de todos os níveis. A sociedade vive em meio a uma barganha constante, negociam entre si absolutamente tudo. Amor, amizade, respeito, poder! Aprenda isso! Na verdade, negociamos até mesmo a benevolência. Haja vista o momento presente: eu dou-lhe apoio, amparo, abrigo e por retorno, você me concede a oportunidade de massagear minha consciência e ainda me garante alguns quinhões a mais para os ajustes com Deus.

- Posso concluir então que a troca já foi realizada ou haverá de me cobrar mais alguma coisa? O que poderia oferecer?

- Percebo que além de linda, você é inteligente, objetiva! Mas contenha-se, logo conversaremos. Deve estar exausta!

- Sim, estou mesmo. Mas a propósito, como se chama, senhora?

- Ana, Ana Lara. Para poupar sua voz com futuras possíveis perguntas, adianto-lhe: cheguei da França há trinta anos e desde então, alojei-me neste lugar, a colecionar algumas vitórias e inúmeras derrotas, a superar frustrações e traições, a enforcar possibilidades de paixão. Dramático demais, não acha?

A moça, meio hesitante, esboçou sinais de concórdia.

- Deixe-me continuar. Sou solitária, apesar de estar sempre rodeada por pessoas, avarenta, ambiciosa, calculista, infeliz e participo de um triângulo amoroso muitíssimo envolvente entre o capitalismo e a libertinagem. Mas não sou só espinhos; sou sensata, festeira, prática. Aliás, não sei o que, erguido sobre esta terra fértil e árida, pode ser considerado flor ou espinho. É um emaranhado de Anas que se completam e se anulam a toda hora. Satisfeita?

Diana, sem saber como agir, emanou um sorriso de lábios fechados que veio pálido, opaco e balbuciou:

- Chamo-me Diana.

Ana, notando o embaraço da moça, revestiu-se de uma certa leveza e falou, num tom menos arrogante:

- Não se assuste assim. Acho que não chego a ser um monstro. Mas... Vejo que precisa descansar, Diana. Durma um pouco.

De fato, achava-se um tanto espantada e até mesmo preocupada com a franqueza áspera da mulher. Toda a elegância de seus movimentos perfeitamente sincronizados, como sendo pura arte, toda sua beleza dourada não conseguiam anular o insuportável peso que carregava nos sentimentos. Era algo como esmeralda lapidada, que adquire ao mesmo tempo o realce da beleza e a perda definitiva da virgindade original.

A jovem, realmente esgotada, dormiu por todo o dia, só acordando quando a escuridão da noite já reassumia seu domínio.

Contente, porém intrigada com as circunstâncias, levantou-se abrupta da cama e saiu à procura de Ana Lara. Dominada pela incontrolável curiosidade que aguçava seus sentidos, pôs-se a caminhar pelas dependências do pequeno prédio (que na verdade, tratava-se de um casarão adaptado) observando com cuidado e extremo interesse, detalhe por detalhe. Algum luxo e uma certa beleza um tanto quanto estupefaciente, digamos.

Avistando a escada, que trazia seus inúmeros degraus adornados com um tapete de veludo vermelho, desceu-a. Mais ao fundo, na cozinha, finalmente encontrou a senhora, que ministrava algumas ordens às empregadas, que aliás vestiam-se como bailarinas; fato que muito intrigou Diana.

A imponente Ana Lara, ao notar a presença da hóspede, pediu-lhe que a acompanhasse até o escritório, localizado no mesmo pavimento. Entrando, convidou-a a assentar-se com certa formalidade e com a elegância que lhe era peculiar, iniciando uma estranha conversa:

- Direi como poderá me ser útil, mas antes, gostaria de saber um pouco mais sobre você.

- Como quiser...

- Serei a mais direta possível, como de praxe. Previno-a para que não se espante comigo. Pois bem, como chegou até aqui?

Titubeante, a moça relatou sucintamente sua história. Ao final, esperando alguma censura, surpreendeu-se:

- Gosto de sua coragem!

Diana abaixou a cabeça. Uma aura de silêncio abraçou o instante. E na sequência, a trepidação:

- Você é virgem?

- O que?

- Avisei-a para que não se assustasse. Já se deitou com algum homem? Já praticou sexo?

- Não, não! Jamais!

Ana Lara, com sinais discretos de um sorriso irônico nos lábios e ignorando o espanto da moça, continuou:

- Você poderá morar aqui durante o tempo que quiser. Poderá até mesmo ganhar muito dinheiro!

- De que forma?

- Vamos lá! Digamos que você fará homens felizes. Eles entrarão em seu quarto para se distrair, conversar, arejar um pouco os ânimos. E você os receberá acolhedora, como verdadeira amiga. Terá que dispor de alguma paciência, é certo, mas trata-se de um trabalho bonito.

- Mas não precisarei deitar-me com eles?

Ana sorriu, oscilando negativamente a cabeça. E Diana:

- Por que então me perguntou se já havia me deitado com homem?

Tentou confundir a jovem:

- Você tem muita garra, a forma como veio parar aqui demonstra isso. Você é quem decide, ninguém irá obrigá-la a nada. E então, o que me diz? Irá ficar?

- Como posso dizer ou resolver algo sobre o que não sei? Estou um tanto confusa! Não estou entendendo o real objetivo desse trabalho.

- Façamos assim, você fica por algumas semanas; duas semanas, talvez. Será tempo suficiente para adaptar-se à casa, a mim e então, iniciar-se, aos poucos, na profissão. Estou certa de que irá adorar! Por hora, acompanhá-la-ei até o quarto que mandei preparar especialmente para você. Venha... A jovem, inocente, meio que perdida sob a situação que a envolvia, porém confiante, acatou o chamado, seguindo-a até o tal quarto.

Não conseguia assimilar o empenho da misteriosa senhora em fazê-la ficar, aceitar o convite. O que teria de tão valioso para despertar tamanho interesse? Contudo, toda aquela hospitalidade lhe inspirava certa confiança e resolveu arriscar-se.

Subiu a escada com os olhos fixos e atentos nos passos suaves da outra, cujos pés, sobre saltos altíssimos, pareciam flutuar, alçar voo. Não teve dúvida; um dia, também andaria assim. Ao chegar até à porta e então conhecer o recinto em que repousaria, ficou perplexa! O magnífico e brilhante piso sustentava o requinte dos móveis de madeira nobre elegantemente distribuídos pelas dimensões privilegiadas do quarto. Sobre a cama, uma colcha tecida à mão com extremos talento e apuro contrastava cores raras e fascinantes, a cobrir o lençol de seda azul; a cortina de renda branca parecia expelir por seus minúsculos orifícios um incontido orgulho por tamanha suntuosidade! Tratava-se, sem dúvida, de um aposento régio!

Ana tocou levemente em suas mãos e levou-a à cama, saindo em seguida, a sussurrar um afetuoso “durma bem”.

Diana permaneceu durante vários dias extasiada com o que vivia, sendo tratada como verdadeira princesa, em meio a pompas e caprichos. Passava suas tardes envolvida em leituras e as noites, assistindo a filmes e ouvindo músicas que soavam do salão. A dona da casa nunca permitia que descesse para suas festas – quase diárias – alegando sempre que “ainda não era o momento”. Não entendia; por outro lado, não se afligia mais com isso.

Contudo, aos poucos foi se libertando da ilusão; sabia que nada seria gratuito, no que Ana Lara fora muito clara; teria que oferecer algo em troca, mas estava disposta a aceitar o negócio, apesar de desconhecer seus pormenores. Afinal, afeiçoou-se à casa e às pessoas que ali moravam. Os empregados, algumas outras hóspedes como ela, todos eram muito agradáveis e gentis. Até mesmo a grande líder já apresentava toques doces nas palavras e atitudes, já não era mais o rochedo de antes, suas falas já não sangravam tanto.

Na verdade, afeiçoou-se também à vida de alteza que lhe ofereciam, ilusória ou não. Rapidamente, começou a sentir-se dona do lugar, como se uma herdeira, tamanho o protecionismo para com a sua pessoa. O cuidado e a delicadeza eram tantos, que só faltavam adivinhar seus pensamentos e desejos. Camareiras, copeiras, faxineiras ao seu inteiro dispor. As bajulações, de tão exageradas, figuravam equilibrismos sobre o limite entre real e imaginário. E assim, deleitava-se ao longo dos dias, com as delícias de se ser objeto de interesse.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 01/10/2010
Reeditado em 01/10/2010
Código do texto: T2532504
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