CAP. 12 - A CAÇADA

(continuação de A FUGA)

A casa de comadre Liu fica na ponta da rua que liga com a rodagem. Todo mundo que entra ou sai da cidade, obrigatoriamente, passa pela porta dela e tem que parar e tomar bênção. Comadre Liu foi parteira por mais de cinquenta anos e praticamente todos os habitantes da cidade ou dos arredores foi partejado por ela. É, portanto, comadre e madrinha de todos. Sabe de todas as novidades e com a memória prodigiosa que tem apesar da idade avançada é capaz de contar com os mínimos detalhes fatos ocorridos muitas décadas atrás e as consequências desses fatos. Nessa tarde morna, sem brisa, sentada na espreguiçadeira, comadre Liu contou a comadre Nevinha o acontecido envolvendo as famílias de Tota Medrado e de Zé Maria, o alfaiate. Com a voz macia e compassada das pessoas bem resolvidas, comadre Liu contou que quando Celeste chegou ao sítio, constatou que Matias havia fugido. Batista mandou uns cabras atrás para trazê-lo de volta, mas foi tempo perdido. Ninguém sabia dizer que fim levou o rapaz. De pés e mãos atadas pelo acontecido, Batista, Tota Medrado e a mulher foram falar com seu Zé Maria. Dizem que ele ouviu a história toda sem dizer uma só palavra. Deodato, presidente da cooperativa, que é padrinho de Letícia estava na alfaiataria, ouviu também e achou melhor que a menina fosse para a casa dele, mas o pai disse que não. Que Letícia tinha que vir para casa que ele queria ter uma conversinha com ela. Deodato sabendo do gênio do compadre apelou logo para o bom senso, pedindo que ele não fizesse mal a sua afilhada. Zé Maria prometeu que só iria ter uma conversa com a filha, mas quando foi na boquinha da noite que Celeste entregou a menina em casa, só se ouviam os gritos de dor e a zoada que a cilha de couro cru fazia, durante a surra. Letícia foi colocada na água de sal de tanto que apanhou e o pai a tangeu para fora de casa. Deodato que mora na frente, ouvindo o escarcéu, botou a afilhada para dentro e dispersou o povaréu que já estava se reunindo para ver e ouvir o estrago que o pai estava fazendo na filha por conta do mau passo.

Mês e meio depois do ocorrido já dava para se notar a barriga de Letícia crescendo. Batista e Celeste foram buscá-la para passar a gravidez no sítio, longe dos olhos do pai e do povo da cidade, enquanto providenciavam o enxoval. Depois do dia da surra, nunca mais Zé Maria falou com Letícia nem permitiu que Mariquinha, sua mulher, acompanhasse a gravidez nem o parto dos gêmeos. Apesar do mal estar provocado pelo irmão, Batista estava radiante com o nascimento dos sobrinhos e talvez pela presença de uma mulher de barriga em casa, Celeste emprenhou também. A menina deles nasceu na semana passada.

Vez por outra aparecia a notícia de que Matias tinha sido visto em tal canto aí Batista mandava alguém atrás, mas nem sombra dele. Zé Maria nunca perdoou a filha e nem foi ver os netos. Quando soube que Matias estava em Arapiraca, trabalhando numa revenda de máquinas agrícolas, desapareceu de casa sem deixar notícia. Passada uma semana, Zé Maria voltou e reabriu a alfaiataria com um bocado de cortes de tecidos por cima do manequim, pendurados na porta e dizendo a todo mundo que tinha estado no Recife e que trouxera aqueles panos para fazer roupa para quem tivesse muito dinheiro para pagar, porque era coisa muito fina e que ele estava cheio de dívidas.

Numa manhã de segunda feira Matias abriu a loja de tratores e implementos agrícolas onde trabalhava e ficou esperando os fregueses. Ele era sem dúvida o melhor vendedor, protegido do patrão, amigo de todos os colegas de trabalho. Tinha amizade com todo mundo. Conhecia a todos. Conhecia os fazendeiros, sabia das necessidades e das posses de cada um e tinha sempre algo de bom para seus clientes preferenciais, como ele chamava a cada um que se debruçasse no balcão. Vendia de saquinhos de sementes para horta até trator de esteira com ar condicionado e GPS. Estava de casamento marcado com a filha de um negociante de fumo, podre de rico e muito bem conceituado.

Um desconhecido aproximou-se e pediu para ver uma grade que fosse pequena porque seu tratorzinho não agüentava muita coisa. Conversaram durante horas sobre o tipo de terreno, sobre o que cultivar, como melhorar os tratos para otimizar a produção. Tomaram cafezinho, comeram biscoito maizena, beberam água. Prepararam ficha de cadastro com os dados da propriedade para o financiamento do trator novo com todos os implementos e mais inclusão nos programas do governo de agricultura familiar, irrigação e combinaram um almoço no próximo final de semana como se fossem velhos e bons amigos. Devido aos afazeres que aquele homem gordo, baixinho, careca como um ovo, de gargalhada fácil e conversa agradável ainda teria que cumprir no comércio de Arapiraca para despachar a notinha que a mulher lhe encomendara, (e mostrou sem tirar do bolso o papel onde tinha as coisas que ele deveria despachar antes de voltar para casa) Matias ficou encarregado de levar a documentação ao banco logo que ele abrisse para a liberação do crédito. Coisa mais do que certa pela amizade que Matias tinha com o gerente e pelas posses do novo cliente.

Com o braço sobre o ombro do novo amigo, Matias levou-o até a porta da loja e na despedida o homem perguntou se ele era Matias, sobrinho de Tota Medrado, seu velho amigo e parceiro de partidas de bilhar que ficaram na história de Caruaru. Matias ficou contente em conhecer o amigo do tio querido e que ainda se comprometeu em levar qualquer recado, pois no dia seguinte iria atrás de Rufino para comprar um gadinho para engorda. Entre apertos de mãos e tapinhas na costas o cliente entrou na caminhonete zero quilômetro e Matias voltou para a porta da loja, pensando na gorda comissão sobre a venda que fizera. Já com o carro ligado, o cliente chamou com o papel na mão. Matias veio para junto da caminhonete na intenção de ajudar no que fosse possível e quando pegou o papel, levou um tiro de pistola 765 no meio da testa. O desconhecido saiu em velocidade queimando o calçamento. O papel, na mão fechada de Matias estava escrito “HONRA SE LAVA COM SANGUE”.

(cONTINUA EM 25 DE AGOSTO)