EU NÃO MATEI LUCÉLIA SANTOS

Começaram os jogos olímpicos de Pequim e eu não estou lá. Primeiro porque não sou atleta e, segundo porque não tenho dinheiro. E se tivesse não iria e vou contar por quê. Não morro de amores pelos chineses, os que residem no Brasil não tem culpa alguma desse meu desprezo, mas algo me diz que eles irão concordar comigo.

Eis a minha magoa:

Em 1985, a novela “Escrava Isaura” era exibida com enorme sucesso na China (400 milhões de telespectadores) e Lucélia Santos, a protagonista da história, era considerada uma deusa. Chegou até a ganhar o prêmio de “Águia de Ouro”, o maior da TV chinesa e o primeiro a ser dado a uma atriz estrangeira.

Diante de tal noticia, me ocorreu uma idéia. Vou escrever um livro “Eu não matei Lucélia Santos”, encontrar um tradutor, um editor e vender esse peixe lá. Literalmente um negócio da China, para se enriquecer mesmo. Foram seis meses; três horas por dia datilografando, montando, refazendo, um trabalhão que rendeu 186 páginas.

Como não havia internet para consultar um Consulado (ou coisa que o valha) no Brasil e morando perto da fronteira com o Paraguai, me aconselharam a procurar algum chinês na Cidad de Leste para buscar uma luz, um conselho, a viabilidade do negócio. E achei. Um sujeito muito culto, atencioso, com bons relacionamentos, proprietário de diversas lojas tipo 1,99 e me garantiu que tradução, edição, direitos autorais de Lucélia e outros detalhes não seriam problemas; tudo era uma questão de tempo. Entreguei com a maior inocência aquele calhamaço de páginas Tava morta a lebre.

Deu-me seu cartão de visita contendo três números de telefones, endereço e o que mais você pode imaginar. Também lhe dei o meu e combinamos que dali a uns 30 dias eu lhe telefonaria, ou ele, para ver como as coisas andavam. Tentei contato por mais de 15 vezes e quando “alguém” atendia, a resposta era que ele não se encontrava na América. Para encurtar a história: desisti.

Em 1989 fui algumas vezes à Cidad de Leste fazer algumas compras e sempre de olho naquela loja, que por sinal havia mudado o visual externo, mas nem notícias do tal sujeito. E se o encontrasse talvez nem o reconhecesse, pois chineses são todos iguais. Quando conseguia algum diálogo, me diziam num desconfiado portunhol, que: ou nunca ouviram falar dele ou que já não tinha mais comércio por lá.

E foi numa dessas lojas que levei o maior soco no estômago da minha vida. Sempre curioso em livros foi o que me levou a pregar o olho em um com o título em chinês e que tinha na capa a foto de Lucélia Santos sobreposta àquele desenho do tiro ao alvo.

Apontei o dedo para o livro que estava ao lado da caixa registradora e em cima de uma enorme lista telefônica e perguntei a um chinês de olhar aborrecido: - Qual é a tradução disso em espanhol?

- “Eu nom matei Lucélia Santos” -, disse ele, assim mesmo, com todas as letras.

Descrever aqui eu que senti naquela hora, é perda de tempo.

Mas ainda tive coragem de perguntar se “aquilo” era sucesso e se havia vendido muito na China.

- “Poco né!”. Chinês nom tem “dinero”.

- Mas, “pouco” quantos?

- “Um” noventa, 100 milhões só né?! Mas livro bom! Gostei!

- Tem pra vender?

- Nom! Livro só de chinês, né!

Sim, claro! E se tivesse à venda o que eu iria fazer com um livro escrito em chinês e sem uma referência sequer ao meu nome?

Mais tarde descobri que esse tipo de “comércio” é muito comum entre os chineses. O que dá para ser falsificado, eles não perdem tempo. Afinal, eles estão nesse ramo a mais de quatro mil anos. Quero crer que o livro foi impresso em gráfica de fundo de quintal, como dizemos por aqui, e comercializado nas barracas de camelôs. Não estou indignado por não ter entrado para a história da literatura, mas sim que as minhas contas de luz, água e telefone sempre estão vencidas.

E minha história só vendeu uns 90 milhões de exemplares né!

Tristão de Tall
Enviado por Tristão de Tall em 08/08/2008
Código do texto: T1119452
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