Meu querido Pai Natal, nem sei o que peça.
No ano passado deste-me uma metralhadora e uma manta, mas este ano já nem sei o que te peça!
Talvez uma escola nova.
Faz tanto frio, que estou apertado com os meus companheiros, uns contra os outros, na formatura.
Todos os dias, a minha mãe se despede de mim como se fosse para muito longe.
Enfia-me o barrete justo na cabeça e, ao abraçar-me, chora.
Depois fica muito tempo a olhar, de lá do arame farpado.
A professora só grita. Parece sempre zangada.
Desde a primavera passada tudo mudou na vida.
Há três meses que venho de novo às aulas.
Passo por poças de sangue, que já ninguém cobre de areia.
Se vejo gente deitada, pode estar viva ou estar morta. Tem de se ter muito cuidado, passar de longe, seja lá como for.
Desde que o Abi morreu não tenho com quem brincar.
Não me deixam ir à rua, nem sequer correr no pátio de casa.
Tenho de ficar de ficar sentado no chão a ver a minha mãe medir o arroz e a água, o chá e a farinha, o sal e tudo.
Aborreço-me, temos sempre de comer as mesmas coisas.
No fim a mãe raspa as panelas e as colheres e limpa tudo com trapos antes de as passar por água, porque a água é pouca e nem sempre se encontra.
Fico a olhar para os livros, os velhos têm páginas a menos e os novos têm folhas em branco.
Dantes, a fotografia do Grande Pai e Mestre estava em todas elas, em todas as paredes, em todos os lugares.
Agora nesses lugares estão buracos, os tijolos aparecem por entre a argamassa vermelha. Tiras de papel esvoaçam, comidas pela areia. Quando passamos arrancamos tiras, fazemos bolas pequenas, mas nem podemos ir aos pontapés pelas ruas, porque há mil perigos espalhados, se a gente tropeça pode ser levado nos ares de repente.
Quando oiço tiros estremeço e o xixi escorre-me pelas pernas.
A minha mãe olha-me com cara séria, mas já não ralha.
Sobretudo desde o dia em que a bomba rebentou dentro da escola.
A professora cantava e nós em coro com ela.
De repente um grande estrondo, um vento forte, abanou tudo, caímos no chão aos gritos.
Queríamos fugir mas estávamos desorientados.
Os vidros voavam e entravam em nós sem darmos por eles.
Só depois olhámos uns para os outros e nem nos reconhecíamos, estávamos negros, cheios de feridas, de sangue, de farrapos.
À nossa volta não se distinguiam senão destroços. Ouviam-se muitos gemidos e alguns não se levantaram.
As ambulâncias demoraram, levaram os que puderam, ficámos agarrados uns aos outros, tremíamos e rezávamos, as feridas agora doíam muito muito mas não tínhamos remédios.
Sonho sempre que oiço estouros e acordo aos saltos.
Tenho medo dos soldados, vistam o que vestirem, não gosto os ver passear pelas ruas, armados até aos dentes.
Falam uns com uns com os outros numa língua que não se entende.
Se me acenam e sorriem, fujo. Se me estendem a mão, penso que vão agarrar-me e corro o mais puder, escondo-me.
Este ano não se fará nenhuma peça de teatro.
Cantaremos o hino à pátria iraquiana e pronto, disse-nos a professora que anda aterrorizada desde que os filhos morreram.
Já não consegue dar aulas, por mais que disfarce.
Puxa o lenço para os olhos, mas fica muito tempo a olhar os livros sem ler, volta-nos as costas, mas eu percebo que chora em silêncio, tem sempre os olhos vermelhos.
Irrita-se à mais pequenina falta.
Pai Natal, faz com que a mãe consiga uma posta de carne, na carrinha branca.
De vez em quando vêm jornais velhos a embrulhar coisas e a mãe fica a ver as notícias como se falassem de outro mundo, de olhos arregalados.
Eu tenho muita vontade de lhe fazer perguntas, mas calo-me, afinal sou o chefe da família desde que o pai anda no deserto.
Tenho de impor respeito.
Passando o Natal, em Janeiro, já farei nove anos.
Minha mãe já não me deixa adormecer perto dela nem me dá beijos.
Diz que tenho de ser forte, que vou ser um soldado para libertar a pátria iraquiana dos invasores do ocidente.
Ia dizer um nome, mas é proibido.
Se o disser, ficarei três dias preso.
Sem vir à escola.
Sem cantar no frio do pátio o hino da pátria.
Distraio-me muito pensando. Mas reparam se não canto.
Portanto tenho de cantar enquanto penso em tudo.
Quem sabe se pensar muito sonhe menos e não acorde, na noite escura, aos gritos, o xixi correndo pelas pernas abaixo, a tremer sem conseguir parar.
Pai Natal, não sei que pedir-te este ano.
Trás o silêncio de volta!
Maria Petronilho
Lisboa, 3/12/2003