O ROUBO DA NOITE DE NATAL

Aproximava-se o Natal... O mesmo acontecimento alegre de sempre. Festa, luzes, principalmente, muita expectativa. Todos os habitantes da pequena cidade de Cravo Belo preparavam suas casas para reviver o encantamento daquela noite de amor.

Dona Amélia, preocupada com os preparativos para receber os filhos que a vida espalhou, se desvelava ao montar a árvore, que seria a mais bela de todas, frase repetida todos os anos. Certamente, todos ficariam deslumbrados ao contemplar as luzes que faiscavam como pequeninas estrelas multicoloridas, reveladas numa bela noite de lua nova.

Muita luz, muita festa e muito barulho não faltariam, no momento em que as crianças fossem se acotovelando ao pé da árvore, como um bando de pardais em algazarra, felizes como só se consegue ser nas noites sem sombra e solidão.

A maior preocupação de Dona Amélia era lembrar sempre às crianças que o dia vinte e cinco de Dezembro é o aniversário de nascimento de Jesus, não apenas um dia de comilanças e bebedeiras.

O jardineiro Américo, muito amigo da família, jamais se furtara a um convite para participar da ceia na casa de Dona Amélia; nunca sem ter orado antes, conforme afirmava sempre, ao dar a primeira garfada no arroz de forno, cuidadosamente preparado pela anfitriã.

A verdade era que o jardineiro já se tornara peça chave nas festas na casa dos Alves. Tornara-se, inclusive, uma figura folclórica naquela cidade, pequeno pedaço de chão, encravado entre montanhas, sob um céu transparente e bonito das Minas Gerais.

O povo de Cravo Belo, como é comum nas pequenas cidades, quando se envolvia com um determinado acontecimento, esquecia de outros problemas, até que um mais interessante surgisse. Ou até que algo de anormal ocorresse, fora da serena rotina do lugar, conforme passarei a narrar.

Os netinhos de Dona Amélia e Sr. Antônio, Renato e Marcela, chegariam às vésperas do Natal. Os avós foram buscá-los na rodoviária, pois viajaram sem os pais, pela primeira vez, portando uma autorização do Juizado de Menores; já que os mesmos, comerciantes na capital, viriam no dia da festa, após fechar o comércio que se estenderia até as tantas...

Joana, uma bonita ruivinha de oito anos, também neta do casal, já estava na cidade e foi receber os primos. Estava feliz em reencontrar os companheiros de algazarra e brincadeiras, de tantas férias, quando, muitas vezes, relutavam com os avós, no momento de tomar seu banho, no final das tardes... Era um brincar sem fim, que enchia de riso e barulho a casa sempre tão quieta dos avós.

Chegou o ônibus... Renato, Marcela e Joana, abraçavam-se com efusão, saudosos e esquecidos das briguinhas do último ano, incidentes passageiros e sem muita importância para aqueles leves corações.

Chegando a casa, outro momento de muita alegria: escolher o melhor lugar para colocar o sapatinho. Apenas Renato, há dois anos, escolhera a janela, como um lugar definitivo e não mais se preocupava com isso.

Marcela, ao escolher um local próximo à lareira, deu uma explicação bastante original. Segundo ela, o Papai Noel, se sentaria na poltrona para descansar das andanças da noite e se aquecer um pouco e, agradecido, colocaria ali o melhor de todos os presentes. Joana, mais tradicional, colocou seus sapatos debaixo da árvore, naquele ano repleto de luzes e de figuras recortadas pelas crianças, que a queriam mágica.

O sol declinava no horizonte, entre montanhas, seu sonho arriado, exibindo suas derradeiras cintilações, como um bailado, rutilando... Rutilando, com uma promessa de um breve regresso.

A NOITE SUMIU

Aconteceu algo novo naquele ano. Mais do que novo inusitado e irreal: no momento em que o relógio da praça marcou seis horas da tarde, soaram normalmente cinco sonoras badaladas, a sexta soou lenta e rouca e parou repentinamente. Ao mesmo tempo, todos os relógios pararam,inclusive,os de bolso.

Toda a cidade ficou sem compreender o que acontecia. Pessoas inventavam explicações, mas ninguém se fazia entender. O tempo parado, sinal de que não aconteceria noite, como poderia haver Natal?

Como todos os rádios e televisões deixaram de funcionar na mesma hora, como saber o que estava acontecendo em outros lugares?

O jeito era apelar para o Sabino. Era ele uma espécie de porta-voz, que se metia a explicar todas e quaisquer mudanças, como alterações na política, desvios do trânsito, previsões do tempo e do horóscopo...

Havia muitas pessoas aglomeradas na praça da cidade, quando surgiu Sabino, o minúsculo Sabino, grande em conhecimentos. Dirigiu-se ao povo:

- Estava dormindo, profundamente, e tive um sonho, nesse sonho, recebi revelações. Não posso explicar nada agora até que tudo se resolva.

O povo aplaudiu Sabino, como se lhe desse carta branca para agir em seu nome, já que confiava em sua capacidade.

Quem conhecia Sabino, sabia ser ele um bom homem, dono de um coração de manteiga. Alguém que se preocupava com o próximo, e ofertava o calor de sua bondade, mais que suas explicações. Agia como um assistente social, não permitia que um semelhante dormisse ao relento ou passasse fome, nunca lhe negando abrigo e um bom prato de sopa, nas noites frias de inverno.

A fim de executar seus planos, Sabino se dirigiu à casa dos Alves e expôs algumas de suas idéias:

- Farei tudo para o que fui destinado, mas é preciso que Joana, Marcela e Renato me acompanhem.

- Claro que deixaremos, não é Tonico? Vou preparar agorinha uma merenda para vocês, que a caminhada pode ser longa.

- Oba, vovó, muito bem!

Apesar de os instantes passarem, fora dos relógios, a noite não acontecia.

EM BUSCA DA NOITE PERDIDA

E lá se foram as três crianças e Sabino, seguindo a linha do horizonte, conforme ordenava o sonho. Por algum tempo, se mantiveram calados, sem ter a mínima noção das horas no relógio de Deus. As crianças nem imaginavam o que as esperavam. Sabiam que haviam de ajudar a desvendar um mistério ao acompanhar Sabino. Este andava firme como quem conhece a verdade.

Depois de muito andar, Marcela, em voz baixa, comenta com o irmão e a prima:

- Estou cansada, e cadê a noite?

- Fique, quieta, Marcela, quando for hora de parar, seu Sabino diz, certo?

- Eu ouvi tudo, minha querida, você tem razão – intercedeu o homem, é melhor pararmos para dormir um pouco, debaixo desta árvore e depois a gente continua a busca.

Passados alguns instantes, Sabino foi despertado por uma voz muito rouca,

Estranha, entrecortada por gargalhadas sem sentido. Não conseguia prontamente saber de que direção vinha aquela sinistra voz.

Sabino ficou um pouco atrapalhado, olhou para os lados e para cima e viu uma figura incomum, a gangorrear nos galhos daquela árvore. Parecia um duende saído das páginas de um livro. Tinha uma touca cor-de-abóbora quase a lhe encobrir os olhos, insuficiente, porém para esconder um olhar maldoso, que parecia varar do tecido e a estender por todos os lados.

O estranho ser, num único impulso, pulou no chão e, gargalhando sem parar, com uma risada de bruxa, encarou Sabino e correu o olhar sobre as crianças que, tranqüilamente, dormiam seu sono inocente.

Sabino temeu que o homenzinho acordasse as crianças, por pura maldade e as assustasse. Ainda duvidando de tudo que via, dirigiu-lhe a palavra:

- Quem é você e o que quer de nós?

- Sou o ser mais terrível que existe nesta terra. Não gosto de gente, muito menos de gente nanica. Estas pestes que só sabem ser alegres. Está vendo aquela caverna? Lá ensaio todos os meus truques e maldades, aliás, as piores. Tenho animais de estimação como morcegos, lagartos, cobras venenosas que me entendem.

O sábio homem, pela primeira vez, não conseguia expressar-se. Lembrou, apenas, que não podia falhar. Realmente, tudo faria para encontrar a noite e recuperar a felicidade do Natal.

De repente, Sabino percebeu que o estranho homem ocultava alguma coisa sob os farrapos, que lembravam ter sido uma blusa. O homem se dirigiu ao anão:

- O que você traz debaixo da roupa, posso ver?

- Flores é que não são, estou certo? E não me trate com intimidade...

O estranho ser retira um objeto do bolso interno da roupa e diz:

- Parece uma garrafa normal, com gargalo e tudo, mas é negra como a fome e faz doer os olhos de quem se atreve a fitá-la.

- Puxa! - exclama Sabino sem entender - penso ter dentro algumas faíscas extremamente luminosas, parecem querer explodir meus olhos!

Sabino, mesmo assim, tenta se aproximar, protegendo com as mãos os olhos,

mas o homúnculo o detém, grasnando:

- Alto lá, não se arrisque mais, eu detesto criança e aqui tem três delas –ameaçou – o que você chama de faíscas são, na verdade, estrelas aprisionadas.

- Então, o que você traz nesta garrafa é nada mais, nada menos que a...

- Espertinho, você, - O anão interrompeu quase explodindo de tanta maldade – é a noite que vocês estão procurando e que os meus poderes malignos me permitiram esconder, resultado de um exercício incansável de longos anos de malvadeza.

- Meu Deus! Exclamou Sabino - é difícil acreditar em tudo que vejo.

- Vocês estão esperando pela noite, não é? Nunca mais irão tê-la, pois é agora minha prisioneira, há... Há... Há...

- Por favor, meu bom homem, não grite, não acorde a criança, poupe-as, por favor...

- Não me chame bom, odeio essa palavra, eu sou mau, perverso, o mais terrível ser que existe!

Realmente, o estranho ser detestava crianças e a tudo o que lembrasse alegria, pureza e bondade. Também não tolerava repiques de sino e tinir de cristais em festa e, principalmente sorrisos. Interveio o estranho:

- O meu maior objetivo é espalhar desgraças por toda a humanidade, em forma de guerras, doenças, misérias, fome e toda sorte de violência e infelicidades. Sei que vencerei, pois o mundo caminha para isso.

- Você não tem parentes, irmãos, família, enfim?

- Não toque nesse assunto que eu não respondo por mim! Se insistir, vou chamar o enxame de abelhas africanas que me servem, para atacar esses dorminhocos...

- Desculpe-me, contemporizou Sabino, eu só quis ajudar.

Passava o tempo sem horas e a noite jazia dentro daquela garrafa. Sabino argumentava que deveria devolver a noite com seus cânticos, risos e estrelas.

A estranha figura insistia que interferir na natureza, a ponto de impedir a

noite era a sua maior façanha e seria impossível abrir mão de um prodígio feito esse.

O anão resolveu mostrar a Sabino uma espécie de bússola, tipo um relógio de pulso, sem cordão, dizendo:

- Aqui eu aprisionei o registro do tempo. Viu que parou às seis da tarde?

- Você há de libertar a marcação do tempo. O bem mais uma vez vencerá. Eu sou um incansável missionário do bem e a vida voltará ao normal, inclusive a comemoração do Natal.

Enquanto o medonho grunhia, Sabino pensou no povo. Lembrou de outros natais, longe da maldade e do medo. Olhou para as crianças que dormiam e temeu fossem elas acordadas por aquele ser inescrupuloso.

Restava a Sabino uma saída, ou seja, arrancar a garrafa do anão, com a noite e o relógio que aprisionou o tempo. Não queria agredi-lo, pois tinha um bom coração.

- Vou despertá-las com um tufão – começa a encher as bochechas de ar, até parecer estourar...

O homenzinho tropeça nos pés de Sabino que dera um passo à frente, para tentar impedi-lo. Com o tombo, um forte barulho se fez ouvir. Marcela acorda.

A menina, esfregando os olhos, olha a estranha figura e diz:

- Por acaso você é um dos anões da estória da Branca de Neve, que vovó me contou?

O homem apenas grunhiu umas palavras incompreensíveis, tão agudas que Renato e Joana acordaram. Joana olhou para ele e inocentemente interpelou:

- Você também vai com a gente procurar a noite de Natal que fugiu? Vai ser muito divertido. A gente trouxe até matula, como diz vovó.

O malvado quis enfurecer-se, mas os meninos desconheciam a maldade e insistiam para que os acompanhasse, sem dar-lhe tempo de responder. Sabino olhava para as crianças e para o homem, alternadamente, como um jogo de pingue-pongue. Joana interveio:

- Gostaria que ele também fosse a Cravo Belo, para conhecer nossa família, não é mesmo Sabino?

Marcela e Renato, como o homenzinho não saísse do lugar, aproximaram-se dele, tomaram as suas pequeninas mãos e pediram-lhe mais uma vez que caminhasse com ele em busca da noite.

A LIBERTAÇÃO DA NOITE

Pareceu, de repente, acontecer uma mágica. O homem tirou a garrafa do esconderijo e mostrou para as crianças. O menino olhava surpreso para a noite. Marcela estava perplexa. Sabino continuava olhando sem nada dizer e o anão corria o olho rapidamente pelas quatro pessoas à sua frente:

- Viram? Aqui está a noite que vocês estão procurando...

Marcela olhava deslumbrada para o Cruzeiro do Sul que cintilava!

Era tamanho o encantamento das crianças e havia tanta doçura na sua voz, que, de repente, o duende começou a gritar:

- Parem com tudo isso, me deixem só, vocês estão conseguindo libertar a noite. Como doem meus ouvidos! O som dos sinos está escapando e eu não vou suportar ouvi-lo novamente!

- Mas é tão doce e bonito – interveio Renato – veja como a lua é nova! Deixe-me olhar de perto, em minhas mãos, deixe!

- Por favor, repetiam elas em coro!

Sabino se mantinha ao lado, como a proteger seus amiguinhos, sem nada dizer.

- Não sejam assim tão amáveis, eu não gosto. Sou terrível, até os chatos dos passarinhos se assustam comigo, até mesmo os morcegos. Não me aborreçam mais, pode ser pior!

Naquele momento, a garrafa já entreaberta escapa de suas mãos:

- A noite está saindo – gritou Sabino – olhem crianças, que coisa linda!

Aos poucos, a garrafa foi adquirindo uma cor clara, semelhante ao azul do céu, enquanto um barulho de guizos se fazia ouvir, cada vez mais alto e mais harmonioso, como uma música celestial. O anão olhava espantado para as crianças, quando Sabino resolveu explicar:

- Olha, seu moço, não foram meus amigos que libertaram a noite, mas seu coração que amoleceu. Vejo que seu olhar está mais doce e sua fisionomia mais humana!

- Voltem para suas casas e me deixem aqui. Eu não significo mais nada e nem sei o que fazer sem os meus poderes... Estou fracassado.

- Crianças, vamos fazer o que ele está pedindo, vamos embora. Ele sabe o que esta dizendo.

Quando eles deram o primeiro passo em direção à cidade, o anão chamou Sabino e lhe entregou o relógio do tempo, dizendo:

- Esta é uma lembrança minha. Não é assim que as pessoas agem quando gostam de alguém?

Sabino agradeceu emocionado e lá se foram rumo a Cravo Belo, enfrentando com coragem e alegria a escuridão da noite.

E A FESTA ACONTECEU

A noite transcorreu serena e calma como devem ser as noites natalinas mundo afora. A criançada da cidade se reuniu para exibir seus presentes. Conforme acontecia em todos os anos, a festa de entrega de presentes aos carentes se realizaria no Ginásio da cidade.

As arquibancadas estavam repletas. Balões coloridos davam um toque especial ao acontecimento. As crianças pobres se organizavam em filas para receber seus presentes.

De repente, surge um Papai Noel que não estava na programação. Era um homem pequenino e magro, barbas brancas como um linho e um capuz enterrado na cabeça minúscula. Todos procuravam adivinhar quem seria aquela pessoa e de onde viera. Não era ninguém conhecido.

Renato, na arquibancada, chama pela mãe insistentemente:

- Veja, mãe, o duende!

- Que, duende, meu filho?

- O duende que prendeu a noite de Natal na garrafa para não haver a festa!

- Não ter Natal... Duende... Noite na garrafa?

Sem nada compreender, Madalena, a mãe de Renato, vira-se para o lado e comenta com a amiga:

- Essas crianças de hoje tem uma imaginação fora do comum, não é?

Marcela, no colo do pai, tinha a mesma sensação de conhecer aquele homenzinho; comentou qualquer coisa com o pai que não deu qualquer importância ao assunto.

O Papai Noel entregou às crianças belos presentes e, depois de falar sobre o significado do Natal, sobre a paz e o amor que unem os povos, entregou ao Prefeito uma vultosa quantia em dinheiro para obras sociais. Em seguida, despediu-se com um aceno, sem ter falado de onde viera.

Sobre o sumiço da noite, até a data de hoje, ninguém sabe, ninguém viu.

FIM