O MISTÉRIO DO NATAL: O NU DE DEUS
“Não és tu que te abaixas, mas nós que somos elevados a ti” (Santo Agostinho).
Ao meditarmos os cânticos que Lucas inseriu no seu evangelho, contemplamos o mistério do natal. O cântico de Maria, o Magnificat, canta o evento da vinda do Messias, do ponto de vista da mãe, como comprimento das promessas e início de um mundo novo, o cântico dos anjos, o Glória, permite lançar uma olhar no significado e do motivo deste evento; responde à pergunta: Por que Deus se fez homem?; já o cântico de Simeão, o Nunc Dimittis, contempla agora o próprio Salvador; põe no centro de atenção não o fato que nasceu nem mesmo o motivo pelo qual nasceu, mas a pessoa que nasceu.
Estes hinos dos evangelhos da infância tem a função de explicar espiritualmente o que acontece, isto é, ressaltar, em palavras, o sentido do acontecimento, conferindo-lhe a forma de uma profissão de fé e de louvor. Indicam o significado escondido do evento que deve ser trazido à luz. Afinal de contas eles inserem a liturgia na história. “A liturgia cristã tem os seus primórdios nos hinos da história da infância” disse certa vez o teólogo Schürmann. Nós temos nestes cânticos, em outras palavras, um embrião da liturgia da natalina. Eles realizam o elemento essencial da liturgia que é ser celebração festiva e segura do acontecimento da salvação. A história – explica Santo Agostinho – indica-nos o que aconteceu e como aconteceu; a liturgia, por sua vez, faz com que os acontecimentos do passado não sejam “fatos passados”; isto é, transcorridos para sempre, acabados, por isso não os realiza de novo, mas celebra-os (Sermão 220).
Nos evangelhos da infância existem também uma narrativa “histórica” de fatos acontecidos de uma vez para sempre e que não se repetirão jamais. Existe uma celebração hínica, graças à qual aqueles acontecimentos serão celebrados pela Igreja cada ano na liturgia do Natal e a cada dia na liturgia da Missa e na liturgia das Horas assim que podemos verdadeiramente dizer junto com a Igreja: Hoje Cristo nasceu, Hoje na terra cantam os anjos... Graças à liturgia e à Tradição viva da Igreja, não devemos dizer, tristemente, que dois mil anos nos separam dos acontecimentos da salvação, mas que dois mil anos nos unem a eles.
Na sua brevidade e simplicidade, o cântico dos anjos “Glória a Deus no alto céus e paz na terra aos homens que ele ama” nos permite dar uma resposta, fundamentada na Palavra de Deus, à antiga questão do porquê Deus se fez homem: Cur Deus homo?. A esta pergunta foram dadas, ao longo dos séculos cristãos, duas respostas fundamentais: uma que põe em primeiro plano a salvação do homem e uma outra que coloca em relevo a glória de Deus; uma que acentua – para exprimir-nos com as palavras do nosso cântico- o “paz aos homens” e a outra o “ glória de Deus”. A primeira a ser formulada foi a resposta que acentua a salvação: “Para a nós homens e para a nossa salvação desceu do céu, se encarnou por obra do Espírito Santo em Maria e se fez homem” diz o símbolo da fé. Esta resposta essencial assumiu várias colorações, segundo os ambientes e as necessidades criadas pelas heresias. Na época em que fé estava empenhada em defender a realidade da humanidade do Salvador contra os gnósticos, se insistiu no princípio da salvação pela assunção: Deus salva o homem assumindo-o em si, na sua pessoa. Salva o corpo, assumindo um corpo; salva a alma, assumindo um alma: salva a vontade e a liberdade, assumindo uma vontade e uma liberdade humanas. “Aquilo que não é assumido – diziam os Padres desse período –não é curado” (S. Gregório Nazianzeno, Ep. 101; PG 37,181). Uma outra articulação da resposta que faz suporte à salvação é aquela que fala de divinização ou troca: Deus se fez homem para divinizar o homem; assume a nossa humanidade, para dar-nos, em troca, a sua divindade. Assim se exprimiam Irineu, Atanásio, Gregório Nazianzeno, Máximo o Confessor, e tantos outros.
Mas até certo ponto do desenvolvimento da fé, na Idade Média, fez uma outra resposta ao “Cur Deus homo”, que desloca a acentuação, do homem e do seu pecado, para Deus e sua glória. Santo Anselmo com sua teoria da satisfação, caminha sobre esta nova via: ele na verdade parte da idéia da honra de Deus, ofendido pelo pecado, que deve se “satisfazer” graças à encarnação do Verbo. Ele escreve um tratado com o título “Cur Deus homo?” e diz: “A restauração da natureza humana não podia ter acontecido, se o homem não tivesse pago a Deus aquilo lhe devia pelo pecado. Mas o débito era tão grande que para salda-lo precisava que tal homem fosse Deus. Portanto, era necessário que Deus assumisse o homem na unidade da pessoa para fazer com que aquele que devia pagar e não podia segundo a sua natureza, fosse pessoalmente idêntico àquele que podia” (Sto. Anselmo, Cur Deus homo?, II, 18). Frei Raniero Cantalamessa, OFM Cap, diz que a situação era esta: “por justiça o homem deveria ter assumido o débito e o obtido a vitória, mas era servo daquele que deveria vencer na guerra; Deus, ao contrário, que podia vencer, não era devedor de nada a ninguém. Um portanto, devia alcançar a vitória sobre Satanás, mas só o outro podia. Ora, eis o prodígio da sabedoria divina, que se realiza na encaranção: os dois – aquele que devia combater e aquele que podia vencer – encontram-se unidos na mesma pessoa, em Cristo que é Deus e homem, e dele brota a salvação”.
A encarnação foi devia ao pecado humano. Sem o pecado não haveria necessidade de redenção e, portanto, seria inútil a encarnação. Mas o pecado ofendeu a honra divina, que só poderia ser reparada por alguém divino assumindo o lugar humano, salvando, assim, a criação, o humano, e também a justiça e a devida honra a Deus. Tudo isso tem um contexto feudal e humano de justiçam como saldar dívida inter pares: só alguém da mesma altura pode salvar a honra.
Duns Scoto, filósofo e teólogo franciscano, dá um passo decisivo, desligando a encarnação da tal ligação essencial com o pecado do homem e assinalando-lhe, como motivo primeiro, a glória de Deus. Duns Scoto, mostrou como a pergunta estava malfeita, pois não deveria perguntar: “se o ser humano não tivesse pecado, Deus se encarnaria?” que torna a resposta “pecadocrentrica”. A pergunta correta tem de ser, lógica e “teocentrica”, como procedência divina, assumindo o ponto de vista de Deus: que significa para Deus a encarnação do Filho?A resposta é ampla, começa na criação e vai até a glorificação, significando que o Filho de Deus é quem dá plena glória, e seus desígnios, sempre são maiores do que o pecado humano.
Nessa glória inderrotável, a criação ganha sua própria glória. Somente dentro do horizonte da glorificação se entende corretamente a redenção do pecado e da morte: para que a glória seja real, plena, é preciso “também” a redenção do que se extraviou, do pecado, da lei e da morte. Porém mesmo sem pecado e até mesmo sem morte a encarnação não só é desejável e possível, mas sempre obra da criação e da glorificação. É para maior glória de Deus, glorificação na criação, é para o Reino de Deus que a encarnação é o grande designo do amor criador de Deus.
É significativo que São Francisco percebe no Natal um sentimento tão divino que se tornou humano e tão humano que se tornou divino: o Amor. Para ele, o Natal devia ser celebrado com mais solenidade do que as outras festas, porque nas outras solenidades, embora “o Senhor tenha operado a nossa salvação, no dia em que Ele nasceu tivemos a certeza de que íamos ser salvos” (Legenda Perusina 110).
Deus usando fraldas e rindo, sentindo o gosto do leite da Mãe e mais aquele monte de coisas que a criança gosta de fazer nas calças. Esse é o nosso Deus, Nosso Senhor, Pequeno e frágil, mas portador da maior força que existe... o Amor.