AO AMIGO CADEIRANTE

Prisioneiros do corpo

Numa destas rasteiras que a vida nos dá viramos num segundo

Em que as asas ciliares pararam de bater um anjo torto

Preso nas engrenagens dos ossos

Em fração de décimos num piscar de olhos tudo muda

E casamos com a cadeira de rodas

Como um cão sarnento

A barra é pesada vida insensata

Olham-nos com se fossemos um vira-lata

Sinapses falhas como um violão sem cordas

Mãos nas rodas

Sem as bodas da liberdade

Pássaro sem flor

Pólen sem cor

Senta que lá vem a história o drama da dor

Novos hábitos novos trilhos lacunas abertas

Um sepultado corpo renasce no filho invertebrado

Um cadeirante aleijado nas mãos por baixo um reles atrofiado

Precisamos até do capim da rua

Dizia meu velho pai um autodidata

E a borboleta se retrotransferiu para a lagarta

Paisagens concretas muito mais lindas

Rodopiando sem retas na cabeça de rimas

O sagrado empenho cruzes no altar e gestos de pantomimas

O corpo é um dependente de outras mãos

É o abraço frio sem direção é o meio a meio

Como um carrinho de churros sem recheio

Nunca diga “deste pão não comerei”

O orgulho é terra sem lei

O sol rosado é coroado por seu lindo rei

São tristes as madrugadas frias

A velha cadeira de rodas é a extensão de meu EME

Tem seu governo como um barco tem seu leme

A vida continua

E as “células-tronco” como o óleo em lamparina encandeia

Vão mitigando aos poucos como a lua cheia

A areia sem pegadas sem o contra peso dos marsupiais

O pão sem o miolo olho por olho e dente por dente

Sondas pras necessidades mais banais...

O mundo do cadeirante

É de pernas pro ar

Sua raiz agora já não serve mais pra plantar

Assim a sociedade condena

Com olhos de soberba

Quem sente na pele a cadeira fria que diga desta água não beberei

Só quem conhece o limite

Sabe o que é um labirinto

Seu amor à vida é do animal o aguçado instinto

Não há respeito humano e sequer paciência

Seu sorriso é dos tempos idos

Preso está a sua cadeira como a casa ao caramujo

A gravidade e a dependência da fala amigdalonco

É como o elevador que precisa dos comandos

Assim vai sentindo o peso que é mergulhar seu pesado tronco

Assim é a vida

Ventos e folhas

Há os escolhidos e os libertos de sua escolha

Até a vaga querem lhe tirar

Estacionar sem plena consciência

Do que é não poder andar

Cadeirante de extremos apague os garranchos e bola pra frente

Não se apresse na dura jornada a julgar pelas aparências

É o caminho da virtude que faz com que voltemos à semente

Jasper Carvalho
Enviado por Jasper Carvalho em 07/04/2012
Reeditado em 07/04/2012
Código do texto: T3600196
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