NAS CURVAS DA ANCHIETA
O movimento de subida na Anchieta é lento, mas nem de longe lembra os dias mais conturbados.
A ressaca ainda amarga a boca. O feriadão, desde sexta, prolonga-se pela segunda-feira.
A Serra do Mar sequer ostenta o alvor da serração típica do mês de julho.
O rádio toca a toda altura uma música que combina com a manhã airosa de sol. O cheiro de mato lentamente anula o odor nauseabundo das chaminés. O multicolorido das quaresmeiras enchem os olhos e a alma de ternura.
São Paulo não pode parar. Uma canção lembra as curvas da estrada que liga ao litoral, enquanto desliza despreocupado sobre o asfalto. É a continuação da festa.
Apesar de toda a animosidade o feriado não deixou muitas boas recordações.
Tem que volver às obrigações.
O rádio avisa que a menos de cinco quilômetros irá se deparar com um gigantesco congestionamento. Dois automóveis colidiram-se, causando ferimentos graves em seus ocupantes.
Lararará. O rádio toca mais uma canção.
São Paulo que amanhece trabalhando, São Paulo que não cansa. Num supetão desliga o rádio.
Barreira policial. Documentos na mão. Rg, título eleitor, CPF.
A carta não tá vencida não, cidadão?
Palavras vãs proferidas pela autoridade policial. O papel que representa a habilitação está em seu poder revelando tudo que pode ser decodificado.
Sopra o etilômetro, vai.
Bafeja no aparelhinho que deve detectar com precisão a quantidade de álcool ingerida.
Vai consultar a central de operações. O guarda gagueja, demora, confere documento por documento.
Ou não tem pressa ou se atrapalha na consulta. Seu plantão apenas inicia e ele esperava não ser tão incomodado com ocorrências insignificantes.
A fila duplica, triplica, multiplica.
Não há diálogos entre os inúmeros usuários da rodovia, só entre policiais gagos ou não gagos. A palavra convencional é pouco ou totalmente inutilizada.
As despalavras contribuem para o aumento gigantesco do congestionamento.
A Anchieta vira um novelo embuchado.
O guarda gago dispensa a palavra. Lançando mão apenas do apito e da caneta. Ameaça usar a arma do coldre.
A pistola não fala, mas intimida e cala.
Um tiro a esmo e tudo se faz silêncio e terror.
O guarda gago que não verbaliza, talvez não oscile em acionar a arma.
As buzinas se rendem ao estrépito.
O apito do guarda nem fala, nem cala.
As buzinas voltam a ser acionadas sem poupar os ouvidos, como contraponto à palavra e aliada à despalavra.
Não se ouve palavras, apenas uma celeuma: xingamentos e imprecações abafadas.
São Paulo que amanhece trabalhando. São Paulo que não para.
Sons estridentes dos apitos.
Buzinas, buzinas, buzinas.