Cartada Fatal

Conto

 

          — É sua vez, vô!

     Jogador viciado desde a infância o velho tremia e suava ao contemplar o que via em suas mãos: dez, valetes, dama e ás todos do mesmo naipe, ouros, além de outra carta, que o torpor do momento não lhe permitiu visualizá-la. Isso mesmo um "Royal straight flush", em formação. Faltava-lhe um Rei de ouros para a mais alta combinação de cartas. Simplesmente inacreditável. Não haveria de acontecer isso. A vida toda esperou essa sorte grande e ela aparecer assim de repente justamente num jogo amistoso e com seu netinho de menos de dez anos de idade.

          —Vô! O pai falou que o senhor não gosta de perder! Pode deixar, não conto pra ninguém que eu ganhei de você. Então joga logo que eu quero dar a cartada final.

     Em meio aos seus pensamentos o avô vê a si próprio, num gesto esnobe e arrogante, atirando à mesa as milagrosas cartas, uma a uma, para aumentar o suspense e a fúria dos adversários. Vê-se também, recolhendo no caixa do cassino a fortuna que lhe deixaria rico para o resto da vida. E finalmente, para sua tristeza, vê-se também de volta ao mesmo cassino, gastando toda a fortuna do prêmio. Era seu carma. Desceu ainda mais uma camada da sua abstração para lembrar-se que tudo isso seria realidade apenas se a próxima carta fosse o tal Rei de ouros. "VAMOS VÔ! Joga logo! quero dar minha cartada final, cartada fatal", seu neto insistia. Estendeu a mão, Titubeou, estendeu novamente e finalmente pegou a nova carta. Ainda tentava se proteger, deixando-a emborcada enquanto descartava a "outra" carta. "Vô o senhor nem olhou a nova carta e ja descartou a velha. Deve tá muito ruim seu jogo, heim?". Também não ouvia seu neto...

     De volta à terra, recompõe seus pensamentos. A vida miserável que teve, a jogatina... O azar! Ou seria a falta de sorte. A falta de sorte de não ganhar, quando apostou a fazenda. Ou no dia que perdeu toda a safra de algodão. "Quer o Deus amado que eu tenha este prazer agora, única e exclusivamente com meu neto! Assim o será!". O mundo não seria digno de saber o real resultado daquela jogada. Não contaria... sequer seu neto saberia... afinal ele era o verdadeiro ganhador...

      — Eu ganhei ou não vô. Diz logo, por favor!

      —Sim meu lindo neto, você ganhou  Mas aí, quebrou a última parte da promessa: mostrou as cartas ao Neto.

      — Mas vô! Um "Royal straight flush"? Não é a mais alta combinação. Quem pode mais que ela?

     — No pôquer e na vida... Nada, nem mesmo...  quase saiu uma blasfêmia  Mas você é o vencedor... O vencedor por todos esses anos...

     O sorriso do neto, a sensação de vitória de ambos... Uma paz celestial reinou. Por muito tempo o ancião ficou em silêncio, contemplando a alegria do neto... Então confortavelmente sentado fechou os olhos e repetiu mais uma vez: "Você ganhou!"

E mais outra e mais outra e então a última. E também foi a última coisa que falou em sua vida.

 

     2011-2022

 


Este conto é baseado em uma cena da novela Pantanal, na versão da TV Manchete.  Espero que esteja também nessa nova versão que começa  na próxima segunda-feira,  28/03/2022.