Aquela Gente Lá...
- A noite fria me faz entrar num café para um vinho quente. Apesar das muitas mesas vazias, prefiro o balcão, pois não vou me demorar. Noto um homem com expressão atormentada quase debruçado sobre a sua caneca de vinho intocado. Busco sentar numa das cadeiras de assento alto saltando uma de onde o sujeito se encontra. O garçom se aproxima e eu apenas aponto para a caneca dele, indicando que quero o mesmo. O funcionário entende e sai para preparar o meu pedido. É quando o transtornado homem começa a balbuciar algumas palavras. Depois, vira-se para a minha direção e começa a contar sua história. Eu apenas ouço...
"Primeiro, tem o mais velho. Aquele que parece com um melão. Que tem um grande nariz. Que nem sabe mais o seu nome, senhor, de tanto que bebe... ou tanto que bebeu... Que não faz nada com seus dez dedos. Aquele que não se agüenta mais. Que esta completamente cozido, e que se acha o rei! Que fica bêbado todas as noites com vinho ruim... Mas que encontramos de novo pela manhã dormindo na igreja, ereto e rígido como uma pedra, branco como uma vela de Páscoa, gaguejando e com um olhar vagante.
É preciso lhe dizer, senhor, que com aquela gente lá, não se pensa, senhor, não se pensa. Se reza!"
- O homem gesticula e imita as ações dos fatos que está narrando. Sigo aguardando meu vinho quente, vez em quando dirigindo o olhar para ele.
"E aí... tem o outro... com cabelos como cenouras e que jamais viu um pente, que é mau como um diabo... mesmo que ele doasse sua camisa para deixar pobres pessoas felizes. Aquele, que se casou com Denise - uma garota da cidade, ou de outra cidade, enfim... E não é só isso! Que fez seu pequeno negócio, vive com seu chapeuzinho, com seu casaquinho, com seu carrinho... Que gostaria de parecer, mas que não parece de jeito nenhum, porque não se pode bancar o rico, quando não se tem um centavo.
Devo lhe dizer, senhor, que com aquela gente lá, não se vive, senhor, não se vive... Se trapaceia!"
- Visivelmente alterado, o homem vai se exaltando à medida em que continua seu relato... Eu, agora, sou todo atenção.
"E então, existem os outros... A mãe, que não fala nada, ou que fala qualquer coisa... e da noite para a manhã, com seu lindo rosto de santa, e que em uma moldura de madeira tem o bigode do pai - que morreu de um escorregão -, ela olha seus rebentos comerem a sopa fria. E eles fazem slurp... E eles fazem slurp...
E aí, tem a velhinha que não para de tremer, e que todos ficam esperando ela morrer - já que é ela quem tem a grana - e que ninguém presta atenção para o que as pobres mãos dela têm pra contar.
Devo lhe dizer, senhor, que com aquela gente lá, não se conversa, senhor, não se conversa... Se calcula!"
- Num sentimento crescente, uma grande emoção toma conta dele e quase salta da cadeira para, num só fôlego, contar o que segue...
"E então.. e então... E então há a Frida, que é bela como um sol... e que me ama da mesma forma que eu amo a Frida!
Até que nos dizemos muitas vezes que teremos uma casa com muitas janelas e quase nenhuma parede, e que viveremos nela, e que será bom estar lá, e que, se não é uma certeza, ao menos é uma possibilidade. Porque os outros não querem! Porque os outros não querem! Os outros falam assim: 'que ela é 'linda demais para mim'! 'Que eu sou bom apenas para matar gatos...' EU NUNCA MATEI GATOS! Ou, talvez, há muito tempo... Ou então esqueci... Ou eles não cheiravam bem... Enfim, eles não querem!"
- O homem está quase chorando... Escuto, comovido.
"Às vezes, quando nos encontramos - fingindo não ser de propósito, com os olhos molhados, ela fala que irá embora, que ela me seguirá. Então por um instante, somente por um instante, eu acredito nela, senhor, por um instante, somente por um instante... Porque daquela gente lá, senhor, não se escapa... não se escapa..., senhor..., não se escapa!"
- Como se o desabafo lhe tivesse aliviado a alma, o homem respira fundo e pausadamente diz, enquanto coloca alguns francos sobre o balcão:
"Mas... já é tarde..., senhor! ... Eu preciso voltar... para minha casa."
- E se vai...! Envolvido por imensa tristeza, tomo o meu primeiro gole do vinho quente, agora frio...
___________________ // __________________
Conto inspirado na letra da música "Ces gens-là" (Aquela Gente Lá) do compositor, cantor, ator e diretor belga francófono Jacques Brel. Todo texto entre aspas faz parte da letra da canção. Brel fez uma emocionante interpretação dessa música durante um show e você pode conferir em:
https://www.youtube.com/watch?v=O6MGGh8WUco&list=RDVz6r0TP4FBI&index=2
Imagem: Jacques Brel durante show (print de tela do vídeo)- A noite fria me faz entrar num café para um vinho quente. Apesar das muitas mesas vazias, prefiro o balcão, pois não vou me demorar. Noto um homem com expressão atormentada quase debruçado sobre a sua caneca de vinho intocado. Busco sentar numa das cadeiras de assento alto saltando uma de onde o sujeito se encontra. O garçom se aproxima e eu apenas aponto para a caneca dele, indicando que quero o mesmo. O funcionário entende e sai para preparar o meu pedido. É quando o transtornado homem começa a balbuciar algumas palavras. Depois, vira-se para a minha direção e começa a contar sua história. Eu apenas ouço...
"Primeiro, tem o mais velho. Aquele que parece com um melão. Que tem um grande nariz. Que nem sabe mais o seu nome, senhor, de tanto que bebe... ou tanto que bebeu... Que não faz nada com seus dez dedos. Aquele que não se agüenta mais. Que esta completamente cozido, e que se acha o rei! Que fica bêbado todas as noites com vinho ruim... Mas que encontramos de novo pela manhã dormindo na igreja, ereto e rígido como uma pedra, branco como uma vela de Páscoa, gaguejando e com um olhar vagante.
É preciso lhe dizer, senhor, que com aquela gente lá, não se pensa, senhor, não se pensa. Se reza!"
- O homem gesticula e imita as ações dos fatos que está narrando. Sigo aguardando meu vinho quente, vez em quando dirigindo o olhar para ele.
"E aí... tem o outro... com cabelos como cenouras e que jamais viu um pente, que é mau como um diabo... mesmo que ele doasse sua camisa para deixar pobres pessoas felizes. Aquele, que se casou com Denise - uma garota da cidade, ou de outra cidade, enfim... E não é só isso! Que fez seu pequeno negócio, vive com seu chapeuzinho, com seu casaquinho, com seu carrinho... Que gostaria de parecer, mas que não parece de jeito nenhum, porque não se pode bancar o rico, quando não se tem um centavo.
Devo lhe dizer, senhor, que com aquela gente lá, não se vive, senhor, não se vive... Se trapaceia!"
- Visivelmente alterado, o homem vai se exaltando à medida em que continua seu relato... Eu, agora, sou todo atenção.
"E então, existem os outros... A mãe, que não fala nada, ou que fala qualquer coisa... e da noite para a manhã, com seu lindo rosto de santa, e que em uma moldura de madeira tem o bigode do pai - que morreu de um escorregão -, ela olha seus rebentos comerem a sopa fria. E eles fazem slurp... E eles fazem slurp...
E aí, tem a velhinha que não para de tremer, e que todos ficam esperando ela morrer - já que é ela quem tem a grana - e que ninguém presta atenção para o que as pobres mãos dela têm pra contar.
Devo lhe dizer, senhor, que com aquela gente lá, não se conversa, senhor, não se conversa... Se calcula!"
- Num sentimento crescente, uma grande emoção toma conta dele e quase salta da cadeira para, num só fôlego, contar o que segue...
"E então.. e então... E então há a Frida, que é bela como um sol... e que me ama da mesma forma que eu amo a Frida!
Até que nos dizemos muitas vezes que teremos uma casa com muitas janelas e quase nenhuma parede, e que viveremos nela, e que será bom estar lá, e que, se não é uma certeza, ao menos é uma possibilidade. Porque os outros não querem! Porque os outros não querem! Os outros falam assim: 'que ela é 'linda demais para mim'! 'Que eu sou bom apenas para matar gatos...' EU NUNCA MATEI GATOS! Ou, talvez, há muito tempo... Ou então esqueci... Ou eles não cheiravam bem... Enfim, eles não querem!"
- O homem está quase chorando... Escuto, comovido.
"Às vezes, quando nos encontramos - fingindo não ser de propósito, com os olhos molhados, ela fala que irá embora, que ela me seguirá. Então por um instante, somente por um instante, eu acredito nela, senhor, por um instante, somente por um instante... Porque daquela gente lá, senhor, não se escapa... não se escapa..., senhor..., não se escapa!"
- Como se o desabafo lhe tivesse aliviado a alma, o homem respira fundo e pausadamente diz, enquanto coloca alguns francos sobre o balcão:
"Mas... já é tarde..., senhor! ... Eu preciso voltar... para minha casa."
- E se vai...! Envolvido por imensa tristeza, tomo o meu primeiro gole do vinho quente, agora frio...
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Conto inspirado na letra da música "Ces gens-là" (Aquela Gente Lá) do compositor, cantor, ator e diretor belga francófono Jacques Brel. Todo texto entre aspas faz parte da letra da canção. Brel fez uma emocionante interpretação dessa música durante um show e você pode conferir em:
https://www.youtube.com/watch?v=O6MGGh8WUco&list=RDVz6r0TP4FBI&index=2