A espera
Ele olhou repetidamente o relógio como se o gesto tivesse algum poder sobre o tempo. Concluiu que a hora não importava, mas estava no momento certo. Antes de sair de casa, batendo a porta, ainda parou para ver, no canto da estante, fragmentos do tempo; a taça manchada de vinho e de batom. Duas cores vermelhas somando-se a um sentimento que talvez fosse também vermelho, se os sentimentos tivessem cor.
Olhou de novo o relógio e teve a sensação de já ter visto os ponteiros naquela mesma posição, em diversas épocas longínquas. Coincidência em tudo, coincidência de horas, de sentimentos, de ilusão desfeita. Tudo igual. Os deuses da antiguidade grega talvez tivessem saído das tragédias para carimbar seus dias com esse momento. Só uma coisa era diferente agora. A consciência dessa repetição. Magoava-o não a espera em si, mas a certeza de que suas longas esperas eram desimportantes para ela.
Ela. Sempre ela. Dona do roteiro escrito com carimbo, inspirada pelos deuses senhores de uma fábrica de carimbos. Ela nunca teve a necessidade de esperá-lo. Ele é que chegava, para fiscalizar, não as horas, mas o funcionamento do relógio. Ela sabia a técnica de se atrasar e perguntar: demorei muito?
Já andando pela rua, comandou do cérebro aos músculos, embora sem convicção: alto! Como um militar. Parou. Então a consciência da repetição em olhar o relógio não lhe bastava? Não bastava. Deu meia-volta. Concluiu que precisava ser importante na vida de alguém.
Tempos difíceis. Tinha que ser ditador de si próprio para ser livre. Retornou à casa, apanhou a taça, no canto da estante, ainda suja, encheu-a de vinho e brindou sozinho. Brindou à deusa que carimbou de vermelho aquela taça. E pôs-se a esperar. Sem olhar o relógio e sem estar no ponto marcado para o encontro. E ficou esperando. Cinquenta anos depois, ainda espera. Espera que ela um dia o encontre na rua, por acaso, dê um sorriso e pergunte: demorei muito?