Debaixo do Mesmo Céu
Epígrafe
Se eu puder aliviar o sofrimento de uma vida, ou se conseguir ajudar um passarinho que está fraco a encontrar o ninho... A vida terá valido a pena.
— Emily Dickinson
Parte I- Pequeno Coração
O vento sopra furioso e a cidade toda se recolhe. O vendaval percorre a rua e a tarde cinza logo se escurece. Por fim, a chuva começa a cair com destreza e vai aumentando gradativamente, na medida em que os trovões riscam o céu e as pessoas correm apressadamente com seus guarda-chuvas coloridos por entre as poças d'água.
As pessoas, ah! Elas são tão ocupadas! Tão envolvidas com seus negócios particulares, com seus empregos e relacionamentos, que acabam esquecendo de sentir a chuva, de sentir o cheiro da umidade que paira pelo ar, e consequentemente, vê que no mundo ainda resta uma parte bela que nunca poderá ser distorcida pela maldade humana ou pela crueldade da vida.
Enquanto as pessoas corriam para se refugiar da chuva em suas casas, tomando uma xícara de chocolate quente ou escondidas debaixo da coberta, uma garotinha estava sentada no meio da calçada, com a cabeça entre os joelhos, chorando compulsivamente, talvez bem mais que as próprias nuvens do céu.
Ao passar por aquela calçada, senti que tudo dentro dela clamava por mim, ela só conhecia o ódio. E só eu era capaz de salvá-la.
Detive-me ali em frente a garotinha e minha presença por si só já anunciava conforto. O tormento, de certo, iria cessar.
Peguei-a no colo com delicadeza e segui meu trajeto. Ela estava segura comigo.
Eu iria protegê-la dos algozes que a machucaram e jogaram-a na rua como se fosse lixo.
A espécie humana é tão fria, por vezes tão incompreensível, humanos que simplesmente esquecem que o próximo, assim como ele, é um ser humano também, com sentimentos.
Mas ela, a minha garotinha, nunca mais vai voltar para aquele lar destruído, toda injúria estava matando-a por dentro e por fora. Ela era uma criança que deveria estar apenas brincando, mas seus pais lhe roubaram a infância, e feriram não apenas o seu corpo, como também a sua alma.
Todavia, agora ela tem a mim que irei remendar cada pedacinho ferido de seu pequeno coração. Ela vai ficar bem, como nunca antes ficou.
Parte II- E quando a morte chamar?
A chuva tilintava sem parar no vidro da janela. Um olhar angustiado acompanhava o deslizar das gotas de orvalho, até que se dissipassem, uma a uma, de instante a instante.
Ah! aquela moça de olhar triste, que outrora amara a chuva, mas que agora já não via felicidade em mais nada. O mundo dela era feito de barro e cinza. Como reverter esse quadro? Como jogar tinta amarela e rosa no papel branco da melancolia? Bem, eu sou a tinta, sou o desenho, a paisagem, sou todos os tons e nuances de cores. Não sou o que substitui o preto, mas o que brilha sobre ele. E estou tentando, de pouco a pouco, com a maestria dos tons de azuis, adentrar na vida dessa moça.
Ela estava internada num quarto do décimo primeiro andar. Há um mês seus dias viraram poeira que se arrasta pelos cantos. E seus dias estavam contados. Quanto tempo ainda lhe restava? Naquele estado ela não sentia o passar do tempo, tudo era uma gota de orvalho escorrendo pela vidraça, efêmero, porém visto de forma lenta.
Poderiam ser três, quatro dias, só o tempo dirá, mas a verdade é que ela já está morta por dentro. E eu estava ali para ressuscitá-la. Para dar um fim ao temporal que ocorre na terra da sua alma.
Mas espere, deixe eu lhe explicar melhor. Sarah, a moça de quem tenho falado, foi diagnosticada há algum tempo com câncer cerebral, num estado já avançado.
Ela morava sozinha, sua mãe morreu ao lhe dar a luz e seu pai havia falecido, também de câncer, há cerca de cinco anos atrás. Uma doença que estava na família há décadas e ela sentia que agora era a sua vez.
Sarah não estava apenas sozinha no hospital, pra ela, ela estava sozinha no mundo e o mundo estava acabando para ela, sem ela sequer ter notado quando tudo começou a se esvair, se é que deu tempo de começar, sua vida simplesmente virou de cabeça para baixo.
A vida dela nunca foi fácil, lutou para conseguir um trabalho quando saiu da escola. E desde então, nada mais fazia além de trabalhar. Ela pouco se importava com si, com sua saúde. Apenas deixava que as coisas fossem acontecendo como acontecem. Deixava a vida seguir seu rumo, em direção ao norte ou ao sul, ninguém podia saber. E ela jamais imaginou que num dia de trabalho qualquer iria passar mal e ir direto para o hospital, onde está até agora. Ela também não esperava por mim, não tinha esperanças. Mas tudo bem, eu gosto de surpreender as pessoas.
Foi no alvorecer de uma manhã, findada a madrugada fria, que eu sentei-me ao lado dela. Seu coração acelerou e pude ouvi ela suspirar como quem suspira após cheirar uma flor de jasmim.
Nos pés da cama, do lado oposto ao meu, estava acomodada a morte, ela me daria algum tempo com Sarah, era pouco, mas era suficiente.
Eu disse à ela que sonhasse com o que quisesse, havia liberdade em se sonhar. Ela nunca tivera a coragem de ter sonhos, sempre tivera medo que eles nunca se realizassem e não fossem mais do que uma mera ilusão. Mas eu garanti que tudo bem se iludir as vezes. Ela poderia sonhar com o paraíso, e ele iria existir nem que fosse em sua imaginação. A ilusão machuca, mas as vezes é o que nos salva, porque se a realidade é ruim, o único escape é criar uma outra realidade dentro da imaginação. E Sarah sabe bem o que é isso. Ocasionalmente ela tem algumas alucinações auditivas e visuais, por conta do tumor no cérebro. Ela fica conversando por horas com a mãe que nunca antes viu, mas quando ela vai embora, Sarah volta a se afogar na melancolia.
Neste fim de tarde ela teve uma alucinação um tanto insólita. De repente ela saiu do quarto me dizendo que estava atrasada para o "grande dia" e começou a desfilar pelo corredor do hospital, com passos lentos e elegantes. Estava concentrada e com um brilho no olhar, mas fixou tanto num ponto em sua frente que, sem olhar para baixo, acabou tropeçando e caindo no chão. As enfermeiras a trouxeram para o quarto, ela estava desnorteada, com isso deram-lhe uma injeção que a fez dormir por horas.
Quando acordou, contou-me que estava se casando e caiu antes de chegar no altar, de modo que os convidados presentes começaram a rir, deixando-a muito envergonhada. Contudo, agora sentia um alívio tremendo por nada disso ter acontecido de verdade. E então começamos a rir de tal episódio. Fazia tanto tempo que ela não sabia o que era ter vontade de rir, que agora ria com feroz intensidade, como se nunca mais fosse voltar a rir novamente, e de fato não ia.
O fim estava próximo... a morte já começava a ficar impaciente aos pés da cama.
Pedi para ela que não tivesse medo, que eu estaria até o último momento e que morrer é como cair no sono, a única diferença é que ela não acordaria mais.
Mas Sarah não queria morrer naquela cama de hospital, olhando para aquele teto deprimente. Foi então que a levei para um jardim que possui as mais belas orquídeas. Ela deitou na grama e sentiu que estava pronta para partir, partir como vento sem rumo, sem se preocupar com nada.
Enquanto o seu coração desacelerava, ela acompanhava com o olhar o mover lento de uma nuvem. O céu está sempre bonito.