Você e Ele.

Você o vê do outro lado do balcão, percebe o cansaço na fisionomia dele. Poucos balconistas para uma multidão de fregueses. Chega a sua vez, ele, com toda a gentileza e cortesia te atende, e serve, te escuta. Entre uma reclamação e outra da tua parte, desprende-se da face dele um tímido sorriso de muito obrigado, enquanto sai sem agradecer.

Você o vê estender a bandeja de trufas diante do vidro do carro, sorriso no rosto do vendedor. Você, de cara amarrada, de olhar fuzilante, abre o vidro lentamente. Ele, com toda a ternura te oferece deliciosas trufas de vários sabores, o sinal continua fechado. O olhar dele te implorando para comprar apenas um. A sua negativa o ofende, pois ele bem percebe que estás a mentir. " Não tenho nada agora". Você diz uma mentira com o olhar de uma verdade. A tua consciência, pesada, mostra na tela do pensamento todas as cédulas escondidas em sua carteira. " Deus abençoe moço". Ele responde educadamente, olhando você bater em retirada na abertura do sinal.

Ele o vê de dentro do balcão, lembra-se de todas as vezes que te atendeu, das implicâncias. A fisionomia do atendente muda, o sorriso vai embora. Você se aproxima, tentando ser educado, não quer repetir o que fez da última vez. O bom dia não é correspondido, nenhuma expectativa é correspondida, aliás. Então você retorna chateado, com raiva, convencido de que o contrário seria melhor, promete para si mesmo que fará diferente da próxima vez, que dará o devido troco. Ele, ao vê-lo partir furioso, arrepende-se do trato áspero, promete a si mesmo que da próxima vez será mais educado.

Ele o vê dentro do carro, lembra-se da última vez que ofereceu suas trufas, é o mesmo homem com certeza, ele diz para si mesmo. Lembra-se inclusive das palavras, da falta de educação, da negativa, do olhar de mentira, da demora em abrir o vidro desconfiando de sua índole. Ele então decide passar pelo caso, fingi não vê-lo, mesmo ao sinal de seu aceno, ele passa direto, atende o carro detrás, fingi não te escutar. Você. Promete entre palavrões, que da próxima vez será diferente, sendo ainda mais bruto quanto é possível ser, sai cantando pneu ao abrir do sinal. Ele, já na calçada, observando sua presa raivosa, arrependido por não tê-lo atendido, prometeu à si mesmo que da próxima vez será mais educado, e como pedido de desculpas, pensa até em dar-lhe uma trufa a mais...

Tiago Macedo Pena
Enviado por Tiago Macedo Pena em 03/04/2020
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