a patuleia e outras existências líquidas
microconto 1
ele, ali, com tudo. tinha carros, mulheres, meretrizes,
tinha tudo mesmo, casa aparatosa, era dos pais, roupas de marcas, telefones de marca,
na casa dele até tinha natatório e «aquelas coisas de vedar murro com energia». um dia olhei para ele à distância, dois pares de olhos sombrios, melancólicos, consternados, farejava patuleia, paupérrimo, um ruão disfarçado, coração desavindo pela vida, como quem precisasse d luz, o seu refúgio era a ostensão que não subsistia.
tentei saudar-lhe como um velho propício. desatendeu-me, aparentou que não me conhecia, que nunca me tinha visto. não respondia minhas mensagens, não correspondia minhas chamadas nem email, ou porque eu era um mísera.
vejam! somos vizinhos há 15 anos. separados por 600 metros de muralhas forjadas, de pedras, poera, arrames farpados, espinhosas. aquilo não era tudo, nas redes socias dele, esbanjava riqueza, ostentava luxo inimaginável. nas suas festas tinha sempre os preferidos.
um dia me ligou desesperadamente:
-amigo ajuda-me, estou bizz com um emprego, estou a sobejar mano, apenas respondi-lhe:
-também estou na procura do emprego.
queria ter possuído a coragem e perguntar-lhe:
-e essas coisas que publicas nas redes sociais? silenciei-me! imaginei que se tratasse de dois pobres, dois miseráveis numa ruina fatal, dois indivíduos com sua essência doentio
eu disse para mim mesmo:
que coma esses show off, coma seus status, suas roupas de marcas, sim, se alimente com as suas piscinas, suas meretrizes. doeu o meu coração porque eu sabia que ele estava possuído, que ele no existia, era um disfarce. uma palavra o ajudaria.
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microconto 2
ela, ali, tanto tempo, feliz e sofrida, sempre
xiluva na sua exiguidade mas com uma história tão sofrida, aparentava uma pujança de quarenta. corpos atamancados com sangue, várias cicatrizes tornavam-se em tatuagem. rosto todo lamaçeado pelo sangue pesado. fruto de um coito forçado e agressão sem tamanho.
amor bosta, mórbido. sobrava conversas através de fotos que não existiam, de mensagens que não eram lidas, de saudações que ninguém as recebia. de beijos que ninguém sentia o teor da saliva, abraços invisíveis, lençóis molhados que ninguém sabia a razão.
reclinado na cama, dormia e continuava a sonhar. a paz era tudo desejável, uma paz questionada dos lugares de refrão, nas latas, nas praças, nas ruas, nos jardins. era uma ejaculação de todas experiênciais passadas naquele cortejo violento. um sonho perene das sílabas gerais, com muitas vírgulas, pontuações, coerência, coesão e uma estilística impecável. sonho de quem queria se livrar daquela escravidão, ou um tanto faz. basta que me use e me pague.
ora! a noite estava comigo como seu único namorado. que sujeição indefinível. naquele cortejo truncado, aos bocados, proporcionais, intermitentes, volúveis e sem conseguir desamarrar-se.
no entanto, decidi que o tempo poderia resolver as minhas contendas com ela.
antes disso, fui gracioso com ela, disse-a:
-amo-te sem recusa, busco-te em suas capulanas eriçadas, altas, magras, vejo te pelos seus olhos cerúleas. que apetência minha contra ti, piripiri, vinagre, ou que pequenez da minha parte. sempre amar-te-ei, desejar-te-ei. linda.
e ela respondeu-me:
-achas que essas coisas insignificantes irão saciar-me, seu pobre. foi bom o quanto durou, não te quero mais. já não me das dinheiro, não me leva para passear, suas roupas causam náusea, estas a ficar até magro, eu gosto de homens musculosos, já não tens emprego, desculpa, já não te quero mesmo.
não tinha como não chorar quando ouvi aquilo.
depois de tudo. eu sabia que ela se prostituía, que era uma meretriz de classe, que nunca seria minha.
eu disse a ela de forma tristonho:
-quero uma alma para ti que seja para ti, e tenhas por corpo o corpo que tu quiseres.
ela respondeu.me:
-«pfutseka você». sai de mim.
passado três meses ouvi que foi batida pelos namorados,
estava pobre. o pior, tinha sido infetada , sem rumo, sem chão, estigmatizada e ninguém tencionava saber dela.
realmente não tardou, me grafou uma mensagem,
-eu te amo cláudio, por favor me perdoe, eu sinto muito,
você é tudo para mim, não me abandone.
seriamente sou a pessoa que todo final de mês lembro a ela para ir pegar antirretrovirais.
microconto 3
sem muita dilação colocaram uma espécie de disfarça no seu rosto, como a dos pintores, começou um barrulho sonoro, como se de uma torneira a pingar água se tratasse. preste para iniciar as dores de um parto acelerado. o aborto salino seria realizado naquele hospital. injetaram no seu útero materno uma solução salina cáustica, apeçonhentando o líquido amniótico e exterminando o bebé no curso de algumas horas.
parecia ineficiente o procedimento, que logo de imediato introduziu outra injecção de digoxina directamente no coração da criança. aquela substância amoleceu o cadáver para tornar mais fácil o acto de rasgá-lo e retirá-lo do útero. quando acordou, viu uma mulher vestida de branco, um barrulho bem fundo, um choro de uma criança, um vida.
tinha nascido vivo, vivo! aborto de 7 meses. ninguém esperava de algo inusitado como aquilo. era um salino! estarrecida a brenda, chamou a enfermeira para ajudar, mas ela se negou retorquindo: «isso não é bebé, é um aborto». as enfermeiras jogaram em um balde de água ainda vivo.
duas semanas após, dores horríveis, contrações de parto que não existia mais, quando se aproximava para urinar, via pedaços de sangue saindo de dentro, coágulos, líquidos e secreções. mais três dias ela acordou com a barriga inchada, mergulhada no sangue, cheiro de carne podre caia no meio das suas pernas.
uma sentença lhe foi dada pelo médico sampaio:
-brenda! não poderá gerar mais filhos. (…) seu útero ficou torto!