SÃO CAIM COMANDOU A GREVE DOS CAMINHONEIROS

 
Costumo viajar de ônibus.  A gente vê o povo mais de perto, fala e - o que mais importa - escuta e vivencia o sofrimento de uma gente humilde. 
Cada companheiro de viagem com a sua história.  Ricas histórias de suas pobrezas.  Pareço candidato, mas aviso logo que não exerço cargo político, nunca o exerci e nem pretendo.  "Meu tempo passou"...
Então - continuando -, no meio desta semana viajei de João Pessoa a Recife e, ao adentrar na bela cidade, pedi parada no terminal integrado da Macaxeira.
Primeira vez ali, ponto de partida para qualquer outro bairro. 
Estava ficando tarde, quase dezesseis horas.  Não é comum o atraso, segundo me informaram, mas tive que esperar cerca de quarenta minutos pelo suburbano de Parnamirim. 
Muita gente para eu ver e, como de costume...
Pena que dessa vez foi mesmo só pra ver...
Não dava pra conversar com ninguém.  É que, do lado externo do terminal, parte elevada, onde se vê um ponto de táxi, três senhores, uniformizados, microfone à mão, volume muito alto para a minha capacidade auditiva, se revezavam a cada dez minutos numa ensurdecedora pregação religiosa. 
Achei um tanto interessante o trabalho voluntário deles, porém pouco técnico em relação ao uso exagerado - ou desrespeitoso, ou desesperado - dos "subíveis" decibéis. 
Pelo que sei, Deus age de modo mais silencioso e nunca nos incomoda.   Falar em nome dEle, eu acho, precisa saber imitá-Lo.  Às vezes, a gente pensa que está agradando ao Pai, mas quem se aproveita é satanás (as pessoas, aborrecidas e incomodadas, começam a pecar com seus resmungados palavrões).  Mas, deixando de lado as inevitáveis reações,  vamos ao charme da pregação.

Um dos pregadores começou a falar e interpretar o Livro do Gênesis:

"Por essa razão o filho deixará pai e mãe" (...)

e estendeu sua fala até a parte que se refere ao conflito entre Caim e Abel, filhos de Adão e Eva.
 
- "Eles dois se desentenderam e o endemoniado Caim matou o seu irmão...  Quantos Caim se encontram, agora, aqui neste terminal rodoviário, hein ?! ...  Quantos drogados ?! ... Quantos ladrões ?! ... Quantos assassinos se escondendo da polícia?! ... Quantos que já bateram em seus irmãos, em suas mulheres e em seus filhos antes de sair de casa ?! ...  Convertei-vos, hereges carregadores de pecados, todos vós sois iguais a Caim! ...  Aceitem Jesus e as verdades que vos digo em nome dEle !" ... blá, blá, blá...  blá, blá, blá... 

Estavam salvos desse martírio somente alguns viajores que se protegiam com seus fones de ouvido.  
Comecei a olhar as caras amuadas das outras pessoas ao meu redor e, sinceramente, senti medo:

"Em que diabo de ambiente eu vim me meter ! . . .  O pregador está garantindo, em nome de Jesus, que está dizendo a verdade" ... 

Para alívio do meu coração, chegou o ônibus que me levaria até Parnamirim.  Ainda assustado, segurei forte a carteira de cédulas, o celular, minha mochila, e pulei pra dentro do veículo feito um gato.

Em pouco tempo o ônibus fez a manobra para a partida.  Ufa ! . . . 
É quando o pobre pregador encerra sua "homilia": 
     
- "Pois saibam vocês, meus irmãos, que esse safado desse Caim, hoje é um santo da igreja k
αθoλKÓ...  
Um santo bandido...
É por isso que o mundo está perdido...
Aleluia !  Aleluia !"
. . .

Engoli, não sem antes duvidar que o próximo pregador tenha levado a notícia de que o pecado original só aconteceu por causa da greve dos caminhoneiros . . .

Há muitos caminhões em nossos caminhos buzinando alto em nossos ouvidos: 

"Valha-me, SÃO DENIT" ! . . .  Valha-me, SÃO DETRAN" !

. . .   "Valha-me SANTA OTITE !" . . .

 
 
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 28/07/2018
Reeditado em 11/09/2018
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