SOLIDÃO

Vivera demais. Era isso que Sam dizia a si mesmo todos os dias. Era certo que seu tempo de existir já tinha passado e que, de alguma forma, fora esquecido como também o fora aquele relógio de bolso em cima da cômoda. Na rua, quando vez outra saía para comprar alguma coisa, sentia-se demasiado demodê. Entre tanta pele devidamente no lugar, só a dele parecia vários números acima do aceitável. Decidiu, então, não sair mais. Bastava assustar o garotinho ruivo do serviço de entrega, pouparia as outras crianças de sua decadente figura. Desde que Emma morreu era só ele em casa. Quebrava o silêncio do sobrado fazendo soar os talheres sobre a louça, lavando os utensílios e deixando a água produzir aquele ruído de riacho correndo para o mar. Quando ligava o rádio, se é que ligava, espantava - se com a língua que ouvia. É certo que não era a sua língua, desconhecia a maioria das palavras. Era arcaico o seu falar. Arcaico. Todo ele era arcaico, tanto quanto o couro da velha agenda onde ia riscando os nomes dos falecidos. Acabara de riscar o penúltimo, do primo Halen; restava-lhe apenas um nome e esse, ele mesmo não riscaria.

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Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 28/04/2018
Reeditado em 28/04/2018
Código do texto: T6321518
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