Isso é um conto?
Somos só nós dois, meu velho. Eu daqui; você daí. Um de frente para o outro. Nada mais nos separa. Somente a grama e alguns palmos de terra que eu evito pisar para não ferir seu espaço. Agora não mais. É, você lembra... eu era bem intrometido às vezes. Não que agora eu não seja mais, mas você me entende. São males de gente velha...
Sim, compadre... consegui envelhecer apesar de tudo. Foi dureza. mas cheguei até aqui. Quem diria... logo eu a quem todos diziam “isso não dá um caldo”. Consegui...
Sabe, é estranho dialogar sem poder ouvir o que você pensa. Sim, estamos aqui. Juntos. Acho que mais juntos do que você gostaria, já que nunca foi chegado a muito contato. mas não do jeito adequado para termos essa conversa. O local certo seria em uma taberna, de preferência, ouvindo cantoras americanas e zombando dos bêbados que passassem por nós sem perceber que a cada trago nos tornávamos iguais a eles. Você principalmente.
A vida foi engraçada. Foi trágica, também, mas não deixou de ser engraçada. Não foi você que certa vez falou que a tragédia e a comédia são dois lados da mesma moeda?
Pois bem, que uma briga de bar nos unisse foi deveras uma comédia, trágico foi nos separar por uma bomba quando finalmente voltaríamos para casa. Até hoje a Valentina chora por você, sabia? E olha que sou casado com ela há uns 40 anos...
Sim, acabei casando com a sua garota... outra tragicomédia. Não ache que fui um safado... ela era sua... mas você nos deixou. Olha que tentei honrar sua memória... mas sabe como é... amor tem dessas coisas. Aconteceu...
Eu cuidei dela o melhor que pude... e isso eu fiz por você também...
Talvez você esteja me xingando horrores daí, ou apenas ficando em seu canto. Desculpa, cara.
Como queria que tivéssemos ido à pé naquele dia. Como queria ter estado em seu lugar na hora que o caminhão capotou e nos lançou para fora. Talvez eu não comesse a maravilhosa sopa que minha mãe fizera, mas você estaria aqui, e eu aí... você teria casado e teria histórias mais legais para contar do que eu...
Os meus netos me perguntam às vezes como foi a guerra e até eles me chamam de covarde por você sempre ter me salvado, para depois quase assassinar-me de porradas por eu ser sempre chorão. Sempre falam “você só conta histórias desse seu amigo e eu respondo que sem você não haveria história.
Engraçado é que pouquíssima foi ao seu enterro, meu velho. Na verdade, você não era nem conhecido aqui... Eu estava ferido no hospital. A Valentina entrou em um estado nervoso que só sarou depois de duas semanas. E nossos amigos em comum se feriram no acidente. Dizem que foi mina, cara... logo ali. Tiraram todas, mas esqueceram aquela... logo aquela. Resumindo, somente o Capitão Rodrigues, o cabo Teodoro e alguns soldados vieram se despedir de você.
Alguns deles disseram que isso foi uma desonra para alguém com seu valor. Inclusive quem falou isso foi o capitão Rodrigues, lembrando do resgate dos dois soldados que ficaram presos no arame farpado que você ajudou a fazer... falou que a maneira com que você avançava, feito um maluco, quase ignorando os tiros, foi a coisa mais poética que ele havia visto. Comecei a rir... sabia? Porque lembrei o que você disse certa vez. Que a única poesia era beber e cagar. O resto a gente improvisa... falei para o capitão, que depois virou major, e ele riu e disse que isso era bem típico seu... no entanto ele repetiu que você ser enterrado sem as devidas honras foi quase um sacrilégio.
Eu discordei dele. Pois acho que era a maneira que você sempre foi. Sem muito alarde. Você se foi como sempre foi. Sem avisar, sem longas despedidas, apenas como um baú cheio de histórias. Tinha que ser assim...
E o que podemos fazer?
O que levamos são só as lembranças que depois serão só cinzas. E acho que isso as torna belas, porque são só nossas e de mais ninguém.
E o tempo não as dissipou.
Por isso vim aqui, meu velho...
Deu trabalho te encontrar, até porque você nunca falou seu verdadeiro nome e no seu túmulo também não consta. Tive que recorrer às memorias da semana após o seu enterro, onde vi flores ainda frescas e cartas de gratidão., para poder chegar aqui.
Tinha que vir porque daqui a pouco estarei aí também. E tenho que lhe dizer... que fiz de tudo para viver como vale a pena ser vivido. Guardei bem a nossa última conversa quando você contou que voltaria para sua terra e para aqueles que você achava que tinha esquecido, levaria Valentina lá... e quando viu que eu ficava triste você falou “seja homem, seu bosta! E faça de tudo por merecer viver e ser digno de pisar na terra”, depois você dormiu... e depois, foi aquilo...
Tentei ao máximo, consegui muito... o resto não sei dizer... o que sei é que viver para mim foi sempre um passo a passo que só agora analiso.
O que foi viver para você? Será que foi passar e deixar um rastro que vai se apagar quando todos os que te conheceram se forem? Ou foi viver mesmo e seguir ainda que o amanhã fosse apenas um eterno hoje?
Não precisa responder... prefiro deixar as coisas assim. Até porque você me mandaria aos diabos com essa ladainha toda. Desculpe pelo incômodo. Só queria sentir a lembrança dos velhos tempos, coisa de velho...
De resto, meu amigo, vamos nos encontrar em breve... mas por ora...aceite essas flores e uma garrafa de cerveja. Até logo.