O reencontro com frei Gaspar, gerou grande vexame. Ravenala apresentou Fernão como marido, para não ter que dar maiores explicações. Sabia o que pensava a Igreja Católica sobre a união de um homem com uma mulher, sem o sacramento do matrimônio.
— Este é meu marido.
— Muito bem minha filha! Por que não escolheu a Basílica Santa Terezinha. Faria teu casamento com todo o prazer. Foi na pia de nossa igreja que foste batizada. Sabias disso?
— Sim. A mãe me falou algumas vezes sobre.
— Não apareceram mais na Basílica?...
— É verdade! A mamãe faleceu e nos mudamos para o Aterro do Flamengo.
— Meus sentimentos pela morte de sua mãe.
Ravenala fingiu esquecer a pergunta sobre o casamento dela na Igreja Católica; e o Frei, não insistiu nem insinuou aguardar resposta.
Despediram-se.
— Não sabia que me casei com uma carola!
Com sabedoria, Ravenala respondeu:
— Faz parte de nosso pacto, não te lembras?
— Sim, mas não faça armadilhas para me casar na tua igreja.
Guardou com tristeza a palavra: ‘armadilha...’ E entendeu perfeitamente, que era um aviso de que Fernão jamais se casaria com ela.
— Quero romper o pacto que fizemos — disse Ravenala.
— Estás propondo descasamento?
— Não! Quero romper o pacto de sermos anônimos, nada sabermos da vida do outro. Quero conhecer tua família!
— Vamos marcar um jantar com minha mãe! Sou filho único e meu pai é falecido.
Vem a noite e cai como um aviso que se aproximava o momento do compromisso familiar. Raquel precisava representar o papel de anfitriã e ao mesmo tempo, convidada. Evidentemente, na função de futura e quem sabe, fracassada sogra, se aquele encontro não ensejasse a oportunidade de outros tantos acontecerem, até que a amizade se transformasse em algo maior do que apenas amizade.
Com que roupa eu vou?...
E escolheu a melhor roupa, nem tanto glamorosa como em seus tempos de estrela, nem tão pequena no gosto. Cuidou ainda de não se dirigir a Ravenala, chamando-a de Vannini. Com certeza, qualquer desalinho de raciocínio causaria desconforto irreparável. Refez cenas e cenários, contemplou cinco anos de glamour, somados a meio século de posterior anonimato: duas faces a vida lhe ofereceu: a primeira, tecida com fios mágicos de encanto e beleza, aplausos, fama e beijos; a segunda, indiferença, solidão e desprezo. No entanto, e apesar de tudo, ainda era seu o Cadillac vermelho-acetinado com o qual, no passado, esbanjara elegância e beleza na Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
— A senhora guarda muitos traços de beleza, fino trato e bom gosto — disse a moça.
— Minha filha, a mão poderosa do deus tempo, triturou-me os ossos. Sou estrela que o vento soprou. O resto, bem o resto, é o que ficou.
As linhas do rosto revelavam as noites mal dormidas, jornadas de glamorosa fama que hoje Raquel trocaria por uma velhice saudável.
— Para que me serviram os holofotes e as noites agitadas, se agora só tenho o negrume e a solidão? Não tenho sequer azeite para reacender a estrela que outrora, em mim brilhou. E logo após o tilintar de delicadas taças de cristais, Raquel conclui.
— Meus filhos! o amor é a brisa suave soprada pela boca de Deus. Forças adversas, no entanto, podem transformar o amor em ódio e a brisa suave em tempestade.
Ravenala desconversou. Ou não quis entender.
— Canhoto, Fernão? Não sabia que eras canhoto!
— É impossível andar em linha reta, quando a estrada é curva. Nasci torto, por certo, tenho um anjo torto a guiar meus passos.
— Gauche — disse Raquel esboçando um sorriso drummondiano.
— Nem tanto sinistro — completou Ravenala.
— Pensei que o anjo torto fosse anjo do mal! Seria apenas um anjo canhoto?
— Anjos são ambidestros.
— Já deram asas aos anjos, mesmo eles não precisando delas para voar, e agora me trazem anjos destros e canhotos, como se não bastassem os seres mitológicos que além de terem pernas, braços e asas, andam por aí com um arco atirando flechas nos corações enamorados? Que amor é este que transpassa com flechas o coração?
— Deus se serve da inteligência humana, para colocar no coração do homem a pedagogia divina. É preciso ferir a terra para que ela produza frutos.
--O amor é lindo, e ao mesmo tempo, feio, se não vivido com maturidade...
--Tudo que se faz com amor e por amor, conduz à tão sonhada felicidade.
A noite imensa. Infinda. Seguia devagar como se as horas andassem a passos de tartaruga. No ar pairavam dúvidas e incerteza: alguma coisa Raquel escondia.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."(obra em construção.)