A boiada atravessa o rio Verde a nado. Adiante, Montes Claros é toda avistada. O gado passa em desfile na cidade. Vira a cara em continência para a mulher que tem um menino nos braços. Gente havia que fechava as portas com medo. E abria janelas para ver a boiada passar. O velho Maximiano estima: ‘Lota dois trens... ’ Veríssimo calcula por baixo: ‘Maximiano errou. Só lota um. Já reparou quantos vagões tem o trem?’
Distraído, o pavão de Walkiria vira pasta entre os casos dos bois. Ninguém cobra a conta. O gado passa. Passa boi. Passa boiada. Só saudade de boi não passa.
O berrante cadencia o passo
O boi faz a estrada
Evem a boiada do Gorutuba
Suando o ribeiro que bebeu
A pastagem vem na carne:
Uma tonelada em cada boi
Tira o pé do chão, Diamante!...
Afasta, Pimenta-de-nico...
Avante, Lampião!
Vai Corisco!...
Sai, Angico!...
Ê boi, ê boi...
Ê boi bom cara pintada
Ê boi, ê boi...
Ê boi bom, pega a estrada
Vai Samburá...
Sai, Boto-cor-de-rosa...
Avante, Ouro fino...
Arreda, Caxangá!...
Abre a porteira, menino!
Que a boiada vai passar.
Bôooi!
— Com certeza, teu avô Generoso escreveu este poema, e já o fez musicado.
— Talvez sim. Talvez não. Mas... Muito tempo depois da morte dele, o poema ‘Saudade em Boi’ foi gravado por uma dupla sertaneja que não conseguiu romper as barreiras do anonimato. Se meu avô fosse vivo, provavelmente, não reconheceria a obra como sua. Mudaram aqui, mudaram ali. Mudaram até o título ‘Saudade em Boi’ para ‘Saudade de Boi’. Mesmo assim, convenhamos, depois do último verso, quando o berrante tocou, o Vaqueiro sentiu saudade de boi, e o boi sentiu saudade de vaqueiro.
— Dizem que ‘Saudade em boi’ é coisa que vem da obra de João Guimarães. Acaso, boi sente saudade?
— Boi sente. Chuvisco arrebentou a cerca e fugiu em disparada à procura de Onofre. Pelo sim, pelo não, deixemos de lado as intervenções. A boiada precisa chegar em Montes Claros.
E foi.
O boi de invernada rompeu estrada, no passo e compasso da toada do vaqueiro.
João Velho vai no coice. Tocando o boi. invernada conta a ponte que passa; o poste, o pasto, tudo passa na vida do boi. Passa boi, passa boiada. Só saudade de boi não passa.
O berrante cadencia o passo. O boi faz estrada. “Ê boi, ê boi... ê boi bom cara pintada. Ê boi, ê boi... Ê boi bom, pega a estrada. Bôooi...”
A boiada avança rumo ao curral da ferrovia. Lança pedras com os cascos na calçada, e segue apressada para a morte — sorte de boi. Pesado na balança. Cada quilo... E ainda se diz que é caro o quilo do boi. É caro, quando a carne é fraca. Também é caro o ovo da galinha. Ela põe dezenas deles e em paga, ganha o milho, e o abraço apertado do galo... O galo nica, beija e bica a cabeça da galinha. Isso é que é carinho! Depois ela vai ao ninho, chocar ovo. Cria a pintainhada e a defende do gavião. Medroso, o galo se esconde, como muitos maridos. Até Adão se escondeu atrás de Eva, depois que comeu do fruto proibido.
Devagar, rompeu a boiada, cortando a estrada de Juramento a Montes Claros, e naquele mesmo dia, embarcou lotando muitos vagões do trem. Duas malas de dinheiro o fazendeiro leva pra casa. Depois da paga, vaqueiros vão à farra, endinheirados, beber cachaça e vadiar com mulheres no cabaré de Montes Claros. Cláudio Manuel Constâncio, o Pururuca, foi preso numa batida policial de bordel. Turíbio Soberbo e Dinotério confabulam planos de criar peixe-leiteiro no rio São Francisco e tomam a estrada em transporte coletivo que os levaria àquela cidade ribeirinha.
Longe dali, a fazenda Campo Grande tornou-se apenas uma interrogação. Nada ficou no lugar, senão alguns recortes da história.
...cibório de nervos e memória
tensa, coberta de sangue...(Cid Teixeira)
Exangue, Campo Grande se esvai. Vai um dia, outro vem. E tudo passa. Passa o tempo. Passa o ano e deixa vestes amarrotadas. Poeira na estrada, vincos e marcas profundas de tristeza e dor. E neste vaivém, a hora se perde no tempo. Soprada pelo vento, a estrela se apagou, ou renasceu?
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento sorprou."
Imagem: Internet
Distraído, o pavão de Walkiria vira pasta entre os casos dos bois. Ninguém cobra a conta. O gado passa. Passa boi. Passa boiada. Só saudade de boi não passa.
O berrante cadencia o passo
O boi faz a estrada
Evem a boiada do Gorutuba
Suando o ribeiro que bebeu
A pastagem vem na carne:
Uma tonelada em cada boi
Tira o pé do chão, Diamante!...
Afasta, Pimenta-de-nico...
Avante, Lampião!
Vai Corisco!...
Sai, Angico!...
Ê boi, ê boi...
Ê boi bom cara pintada
Ê boi, ê boi...
Ê boi bom, pega a estrada
Vai Samburá...
Sai, Boto-cor-de-rosa...
Avante, Ouro fino...
Arreda, Caxangá!...
Abre a porteira, menino!
Que a boiada vai passar.
Bôooi!
— Com certeza, teu avô Generoso escreveu este poema, e já o fez musicado.
— Talvez sim. Talvez não. Mas... Muito tempo depois da morte dele, o poema ‘Saudade em Boi’ foi gravado por uma dupla sertaneja que não conseguiu romper as barreiras do anonimato. Se meu avô fosse vivo, provavelmente, não reconheceria a obra como sua. Mudaram aqui, mudaram ali. Mudaram até o título ‘Saudade em Boi’ para ‘Saudade de Boi’. Mesmo assim, convenhamos, depois do último verso, quando o berrante tocou, o Vaqueiro sentiu saudade de boi, e o boi sentiu saudade de vaqueiro.
— Dizem que ‘Saudade em boi’ é coisa que vem da obra de João Guimarães. Acaso, boi sente saudade?
— Boi sente. Chuvisco arrebentou a cerca e fugiu em disparada à procura de Onofre. Pelo sim, pelo não, deixemos de lado as intervenções. A boiada precisa chegar em Montes Claros.
E foi.
O boi de invernada rompeu estrada, no passo e compasso da toada do vaqueiro.
João Velho vai no coice. Tocando o boi. invernada conta a ponte que passa; o poste, o pasto, tudo passa na vida do boi. Passa boi, passa boiada. Só saudade de boi não passa.
O berrante cadencia o passo. O boi faz estrada. “Ê boi, ê boi... ê boi bom cara pintada. Ê boi, ê boi... Ê boi bom, pega a estrada. Bôooi...”
A boiada avança rumo ao curral da ferrovia. Lança pedras com os cascos na calçada, e segue apressada para a morte — sorte de boi. Pesado na balança. Cada quilo... E ainda se diz que é caro o quilo do boi. É caro, quando a carne é fraca. Também é caro o ovo da galinha. Ela põe dezenas deles e em paga, ganha o milho, e o abraço apertado do galo... O galo nica, beija e bica a cabeça da galinha. Isso é que é carinho! Depois ela vai ao ninho, chocar ovo. Cria a pintainhada e a defende do gavião. Medroso, o galo se esconde, como muitos maridos. Até Adão se escondeu atrás de Eva, depois que comeu do fruto proibido.
Devagar, rompeu a boiada, cortando a estrada de Juramento a Montes Claros, e naquele mesmo dia, embarcou lotando muitos vagões do trem. Duas malas de dinheiro o fazendeiro leva pra casa. Depois da paga, vaqueiros vão à farra, endinheirados, beber cachaça e vadiar com mulheres no cabaré de Montes Claros. Cláudio Manuel Constâncio, o Pururuca, foi preso numa batida policial de bordel. Turíbio Soberbo e Dinotério confabulam planos de criar peixe-leiteiro no rio São Francisco e tomam a estrada em transporte coletivo que os levaria àquela cidade ribeirinha.
Longe dali, a fazenda Campo Grande tornou-se apenas uma interrogação. Nada ficou no lugar, senão alguns recortes da história.
...cibório de nervos e memória
tensa, coberta de sangue...(Cid Teixeira)
Exangue, Campo Grande se esvai. Vai um dia, outro vem. E tudo passa. Passa o tempo. Passa o ano e deixa vestes amarrotadas. Poeira na estrada, vincos e marcas profundas de tristeza e dor. E neste vaivém, a hora se perde no tempo. Soprada pelo vento, a estrela se apagou, ou renasceu?
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento sorprou."
Imagem: Internet