Permitido

Mariano entrou na redação, voltando do Instituto de Medicina Legal, com os sapatos e a barra das calças enlameadas. Lama, aliás, era o que mais havia nas ruas de Odivelas, depois do aguaceiro que desabara sobre a Grande Lisboa 48 h antes. Expressão ensimesmada, pendurou o sobretudo e o chapéu molhados num cabideiro e sentou-se à frente de sua máquina de escrever. Depois, lentamente, como quem acorda de um sonho, puxou um maço de Benfica do bolso, pinçou um cigarro, e o acendeu com seu isqueiro niquelado.

- Como está lá? - Indaguei, vendo que ele não abria a boca.

- Ruim. Muito ruim - respondeu por fim. - Você andou por aí, viu em que pé... ou melhor... como as casas foram ao chão com a força das águas. Parece que fomos bombardeados... e a lama. Lama por todo lado. E gente desabrigada, andando pelas ruas sem rumo...

- No Instituto? Quantos mortos?

Ele tragou o cigarro. Depois, soltou uma longa baforada, olhar no vazio.

- Os mortos estão sendo empilhados, como se fossem troncos... nunca vi nada parecido. Toda hora, chegam bombeiros com corpos enlameados em cima de pranchas de madeira... não há macas... e os descarregam onde der...

- Quantos mortos?

Ele deu outra tragada. Pareceu fazer uma conta mental antes de responder.

- Conversei com um bombeiro... ele disse-me que, só pelas mãos dele haviam passado 63 corpos. Tirou-os da lama, levou-os para o Instituto... disse que há dois dias não dorme, não vai à casa... só retira corpos da lama...

Bateu com o cigarro no cinzeiro.

- E o cheiro... meu Deus... e só se passaram 48 h!

- Nisso não podemos falar. Ordens do Secretariado Nacional de Informação.

- No mau cheiro?!

- "Não falar do mau cheiro dos cadáveres". Não estamos autorizados.

Mariano ia responder alguma coisa, mas calou-se. Seu rosto contraiu-se, olhar duro.

- Não nos é permitido - insisti.

- [11-08-2017]