O Corvo

Sobre o muro de meu tugúrio, olhou-me com olhar lúgubre. Sabia que viria a qualquer momento. Já algum tempo em meu sono fizera morada. Num voo torto pousou sobre a estante, entre obras raras. Pôs-se a bicar um livro e grasnar. - O que queres de mim, ave de mal agouro? Sem rodeios respondeu-me: - Tens aqui a resposta, teu paraíso não existe mais. Num átimo respondi: - Nunca procurei paraíso, oh ave sem juízo.

 - "No inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise."* - Retrucou, bicando livro, pela décima vez. - Minha liberdade é mais importante que qualquer causa - Respondi sem titubear, e completei:

- "Ó tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?" **


 O corvo insistia em bicar o livro escolhido e grasnar. Fiz ouvidos moucos e levantei-me, para tomar uma xícara de café, não me interessa o mundo em chamas. Se se matam, se se morrem. Absorto em meus pensamentos, esqueci o corvo, que parara de grasnar, seguindo-me com seu olhar de trezentos e sessenta graus. Sorvo o café em meu sossego. Perscruto o ambiente. Acendo o charuto sob o conforto da poltrona. - Responda-me ave atrevida, que sabes tu da vida?

"Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que eu lhe fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera". ***


 Mais um trago de café e uma baforada em meu charuto, olho o teto transparente; casa limpa. Jussara vem uma vez por semana e deixa tudo brilhando. Ela sempre tentava um diálogo, que terminava num monólogo. Nas faxinas seguintes, entrava e fazia o seu trabalho, sem me dirigir uma palavra. Ao final da faxina, colocava-se diante de mim, para receber o soldo. Volto na próxima sexta, Seu Arnóbio. E lá se ia Jussara, balançando os
quadris.
 - Você é um egoísta da pior espécie - observou o corvo. Poderia amar Jussara. Talvez ela te queira. Até quando ficará aí, na companhia dessa estante repleta de livros, que não lê mais? Sua vida não tem sentido.
 - Quem lhe disse que busco um sentido pra vida, ave enxerida?
 - Sua liberdade é uma farsa. É verdadeiramente livre quem compromete a liberdade por uma causa. Jussara é uma boa causa.
 - Minha causa é o meu charuto; meu vinho, ave astuta.
 - Continue mentindo para si - insistia o corvo -, e deixe Jussara escapar.
 Nas noites silenciosas e só, eu sempre pensava em Jussara. Em seu jeito de puxar prosa; de insinuar-se. Ante a minha indiferença, abandonou os decotes em que deixava à mostra o colo de ébano, trocara os vestidos curtos em que eu observava discretamente suas coxas torneadas, por calças largas.

"A vontade, se não quer, não cede,
é como a chama ardente,
que se eleva com mais força quanto mais se tenta abafá-la". ***


 - Digo mais - continuou o corvo -, Jussara é a causa que irá tirá-lo dessa letargia. Será um estímulo, que o levará a se comprometer por causas sociais.
 - Não me interessa pra onde vai a humanidade!
 - Porquê mente para si? - Interrogou-me como se soubesse a resposta
 - Quem é você para me julgar, ave invasiva?
 O corvo grasnou um grasnado irônico e apenas olhou-me de viés. Bicou vários livros da estante e e alçou voo.

"À tua noite, deixa-me comigo...
"Vai-te, não fique no meu casto abrigo
"Pluma que lembre essa mentira tua.
"Tira-me ao peito essas fatais
"Garras que abrindo vão a minha dor já crua"
E o corvo disse: "Nunca mais". ****


 Enchi a taça de vinho e liguei pra Jussara.
 - Hoje não posso, Arnóbio, tenho compromisso.
 Queria saber o tipo de compromisso, mas não perguntei. Durante alguns segundos, houve um silêncio, quebrado por Jussara:
  - Estarei aí às oito em ponto, na quarta-feira. Respondi com um obrigado e desliguei.


Da série Outras Espécies

*Dante Alighieri:
** Edgar Allan Poe
*** Dante Alighieri
**** Edgar Allan Poe

Imagem: google




Pesquisa:

Há quem diga que a inteligência dessas aves equivalha a dos chimpanzés e dos golfinhos.

Não é à toa que Edgar Allan Poe dedicou um de seus poemas mais importantes a um corvo misterioso que repetia a palavra “nevermore” ao longo do texto

Além de ter a capacidade de imitar a voz humana e os sons de outros animais, os corvos também usam a linguagem corporal de maneira sofisticada para se comunicar.

Tendo poucos predadores, eles chegam a viver 17 anos na natureza e até 40 anos em cativeiro.

Na França, acreditava-se que os corvos eram as almas de padres e freiras perversos. Para os alemães, as aves eram a reencarnação das almas condenadas e, às vezes, representavam o próprio Diabo.

E algumas tribos nativas da América adoravam o corvo como uma deidade, além de o descreverem como um “pregador de peças” que estaria envolvido na criação do mundo.

Os corvos são extremamente brincalhões

Quando um corvo perde uma batalha, ele é consolado por seus colegas.

Quando seus filhotes atingem a adolescência, eles deixam o lar e formam “gangues” com outros corvos da mesma idade


Fonte: http://www.megacurioso.com.br/animais/39743-10-fatos-sobre-os-corvos-que-vao-deixar-voce-fascinado.htm