Emília abriu o arquivo das lembranças, pegou o livro da vida e folheou algumas páginas: um homem de sobrancelhas fechadas e coração aberto, dava a ela os primeiros traços de vida.
 — Homem bom, o Lobato. Ele me criou, então eu sou boa.
— Somos uma colcha de retalhos tecida de muitos sonhos, bons ou ruins, temos esse pano velho plasmado nas entranhas.
— Não consigo processar tanta informação derramada assim de uma só vez. O campo é vasto demais! Faça um resumo ou meu cérebro derreterá como cera na presença da luz  — interfere Emília.
— Somos matéria e espírito. O espírito é o próprio bem;  a matéria, o espinho inclinado para o mal. Precisamos reacender a chama de amor, para que tenhamos vida eterna. Do mesmo modo que não há vida biológica sem água, também não há vida espiritual sem luz.
— Agora mergulhaste desnecessariamente no óbvio. Ofuscaste meus olhos, e não me deste tempo para raciocinar. Devemos levantar hipóteses, sem afirmar, ou afirmar e depois negar.
— Bobby também pensava desse modo. Hoje ele reconhece  que não se deve assumir meia-verdade,  ‘sim’ é ‘sim’ e ‘não’ é ‘não’.
— O Bobby só existe em sua  imaginação, princesinha. Ele não é real!
— Claro que o Bobby existe! Esteve conosco na Quinta da Boa Vista. Não te lembras?
—Aquele é Robert!
— Robert e Boby são a mesma pessoa.
— Desta vez, pensei como boneca!
— Nem tanto! Para meu pai, Robert é Bobby. Para minha mãe, é Robert, o menino filho da quase vizinha chata.
— E pra ti?
— Para mim, Bobynho, às  vezes, bobinho. (pronunciado com vogal fechada no primeiro ‘ô’.)
— Bobby não é bobo! (ô)
— Bobinho é uma forma de tratar as pessoas com carinho. Pode significar intimidade. Neste caso, não tem o sentido de tolo.
— Que é ser  quase vizinha?
— É uma pessoa que mora meio perto. Quase longe. Quase longe é quase perto. Quem mora em teu coração, mesmo estando longe, está perto. Isso é quase longe.
— Entendi quase tudo.
Esperou Emília acusá-la de plágio. Ou pelo menos paralelismo entre o ‘quase longe, e quase perto’ de Ravenala com o diálogo do pequeno príncipe e a raposa de Bach. Mas a boneca, a  boneca simplesmente  acrescentou:

— Começas a amar uma pessoa, no momento em que te aproximas do coração dela. Se nunca te aproximares, ela estará sempre longe, mesmo estando perto. Isso é quase longe. Mas se te aproximares, ainda que venha a se separar geograficamente, e, estando longe, estarás perto. Isso é quase perto.
***
 Adalberto Lima - fragmento de Estrada sem fim...