A amoralidade habitual

Deitava o sol na planície quando a última saraivada seria incidida sobre o grupelho de inimigos remanescentes. Nestes, cerca de vinte ou trinta homens já estranhos a qualquer ordenamento militar, nada além do natural desejo de sobrevivência impelia suas ações. Aos diabos a honra e o destemor marcial.

Junto à metralhadora afixada sobre a mureta de proteção, do alto de uma colina, desenroscando a tampa do cantil, Júlio Trigueira — sargento Trigueira — observava os inimigos que, buscando proteção, corriam aflitos sobre o terreno plano. A visão já havia se comprometido pela penumbra; Júlio enxergava apenas os vultos ligeiros e inidentificáveis.

Esse temor manifesto, entretanto, ante o impassível semblante do sargento, não lhe causava reação. Através de seus olhos penetrava apenas imagens e seu valor estratégico; noutras palavras: quaisquer enternecimentos de piedade ou remorso eram improváveis em seu espírito, não porque fosse mau em absoluto, mas porque esses sentimentos, para Júlio, eram incongruentes em situações como aquela.

Bebericando do cantil, com a mão livre fez expedir a metralhadora seus postilhões da morte. A prática dos três anos de artilharia o fizera destro naquilo. Mais abaixo tombavam os homens. Quando já não havia mais movimento sobre a relva, cessaram-se os disparos. O sargento guardou o cantil.

Alguns minutos silenciosos se passaram, durante os quais o crepitar das fogueiras do acampamento era tudo o que se ouvia. Júlio mantinha-se estático, contemplativo.

Mas esta condição de calma foi abalada quando ele notou uma silhueta que vagueava entre os mortos, delineada pela réstia de luz solar frente a qual caminhava. Evidentemente era impossível saber quem era, e o sargento já alinhava a mira sobre a estranha figura; contudo, enquanto se preparava para abatê-la, Júlio surpreendeu-se: a figura parou diante de um corpo, ajoelhou-se e ficou nesta posição por alguns segundos. Dispôs de tempo, na verdade, de fazer o mesmo com todos os demais cadáveres. Era um padre.

Vozes alegres requisitavam Júlio para celebrar a vitória. Em alguma outra ocasião ele teria cedido aos apelos, mas aquela era uma circunstância muito singular. Um tremor o afligia e tolhia até o movimento: a realidade mostrou-se tão crua que o estarreceu terrivelmente.

Depois de ver a existência dos que matara valorada pelo padre, que rezou para cada uma daquelas almas, relevando seu propósito na Terra, Júlio se apercebeu de que eram mais que sombras atordoadas aqueles homens. Qual não seria seu desejo de vê-los naquele momento sob o sol, suas caras risonhas, abraçá-los, dar-lhes as cartas e com eles jogar e beber até a plena satisfação! Lembrou-se então de quando matara pela primeira vez: a hesitação antes de fazê-lo e a insônia que o perseguiu por noites a fio; por fim aquilo havia se tornado intoleravelmente ordinário.

É-se continuamente arrastado por esse tropel de misteres que banaliza qualquer hediondez. Como nos torna mais torpes o cotidiano!

Marcel Sepúlveda
Enviado por Marcel Sepúlveda em 18/08/2016
Reeditado em 18/08/2016
Código do texto: T5732029
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