O tempo (dois pequenos contos sobre a passagem do tempo)
1
Uma mulher sai de casa de madrugada para trabalhar.
O marido dorme profundamente, ela sabe que ele não a vai ouvir, mas mesmo assim despede-se como de despede há tantos, tantos anos, despede-se com carinho, não se despede por rotina.
Sabe que ele não a vai ouvir, mas faz questão de se despedir, sempre.
Quando o amor existe, quando o amor soube resistir à passagem do tempo, o amor arranja qualquer ocasião para se manifestar.
2
Conto passagem do tempo como toda a gente, usando calendários, ou o espelho, onde o alternar dos anos e o acumular de rugas e cabelos brancos, me indicam a passagem dele, mas também conto de outra forma: pelo número de coisas que vou escrevendo.
Tal é apaixonante e ao mesmo tempo assustador: o crescer de uma obra, que apesar de poucos irem ler, deixa-me feliz por saber que estou a fazer algo que vai ficar depois de mim, mas o avolumar dela, o contar não dezenas, mas milhares de textos, faz-me sentir que de facto o tempo passou desde que, nos começos dos anos 80, me sentei pela primeira vez em frente de uma máquina de escrever e comecei essa obra.
Mas sempre prefiro contar livros do que cabelos brancos, o tempo passa da mesma forma, mas passa de uma forma menos triste, menos deprimente...