O diploma
Ao aposentar-se resolveu estudar. Terminar um dos vários cursos que começara mas por imperiosa impossibilidade teve que interromper. Matemática, História, Filosofia... Até Direito estava na sua lista de inconclusos. Nessa altura da vida, viúvo, com os filhos todos formados, lhe cairia bem Filosofia. Talvez Matemática. Conjecturou e se decidiu pela filosofia, sua primeira paixão.
Dos créditos anteriores aproveitou muito poco. Teve que começar do início. Uma virose "de velho" fê-lo trancar a faculdade no terceiro período. Voltou um ano depois com "todo gás". Um acidente de trânsito onde se feriram ele e sua neta de 3 anos, lhe roubou mais um ano da faculdade. Para sua felicidade O júbilo jubilou. Assim não jubilaria mais. Seguiu aos trancos e barrancos. A cabeça ainda estava uma maravilha, pelo menos no que diz respeito ao raciocínio e capacidade de aprendizagem. Mas a memória já não lhe ajudava muito. O corpo então, seguia a cabeça, mas a quilômetros de distância. "Maktub"! Não desviava o foco, apesar de tudo. Tinha que concluir, assim estava escrito.
O último período teve de ser repetido também. Uma alagação no seu bairro o deixou sem teto por alguns meses. Mas haveria de levar um título para o túmulo. Aliás, foi o que disse diante de mais de 40 jovens, todos saindo da adolescência, no pequeno discurso da primeira aula. Quando finalmente estava à alguns dias da apresentação do TCC uma pneumonia quase lhe tira a vida. Era ateu mais pediu que o universo conspirasse a seu favor. "Não deixe que toda essa vontade se esvaia pela imensidão do nada". Tamanha fé para um ateu só, lhe permitiu chegar no dia "D". "Vai para o baile de colação?", perguntaram-lhe. "Na minha idade esse curso só vai servir mesmo para ostentação. E já que o universo me permitiu, diga ao povo que vou", parafraseou o dito do "fico". E assim se fez. Na cerimônia de colação foi homenageado. "... gracas a ele que não nos deixando permitir que toda nossa garra 'se esvaísse pela imensidão do nada' é que hoje estamos aqui, neste estado de graça.", concluiu o orador da turma. Aquilo lhe pareceu mais que o esperado. Era o ópio do sumo do prazer. Extasiou-se. Mas a festa ainda estava na metade. Veio o baile, e como prometido, lá estava ele. Era o mais animado da festa. Até bebeu algumas cervejas sem álcool.
No dia seguinte seu filho que não pode prestigiar sua formatura veio visitar-lhe. Encontrou-o morto com um visível traumatismo craniano. Havia no local também uma escada velha de madeira caída, um martelo no chão e uma mesa de centro com o tampão de vidro quebrado. Numa busca mais cuidadosa viu alguns pregos novos espalhados ao redor. O filho abominou a crueldade de quem poderia ter aquilo feito. O funeral foi muito prestigiado. A universidade em peso estava presente. Até o vice-reitor fez discurso, enfatizando o exemplo deixado.
A perícia havia concluído que fora um acidente. O coitado caiu da escada e bateu a cabeça na mesa, na versão deles. Nada de crime ou conspiração. Um simples acidente coadjuvado pela debilidade física do pobre homem.
Estavam reunidos em sua sala, uma semana depois, quando alguém murmurou em voz alta: "Mas também o que estaria fazendo um velho da idade dele trepado numa escada?..." "Colocando aquele quadro novo...", respondeu a netinha, a mesma do acidente, agora com 6 anos, apontando para algo na parede. Olhos marejaram num mesclado de choro e riso; de prazer e dor: era o diploma de Bacharel em Filosofia que ali estava, afixado na parede da sala, para qualquer mortal ver.