Tarcísio
Tarcísio contava aquela história pela milionésima vez. Sempre como se fosse a primeira, pois para este contador de histórias, todo o espetáculo era sempre uma estreia.
Uma plateia muda assistia atenta às descrições que Tarcísio dramatizava gesticulando. Ora enfatizando, ora relativizando, todo ele era modilhos, e esbracejos, e esperneios, e modulações de voz em mil tons e em mil sons.
O contador de histórias nunca aprendera a ler. Nem precisava. As histórias, tinha-as ele gravadas na memória e, escrevê-las, seria matá-las. Sim, porque as histórias de Tarcísio tinham vida própria. Os personagens, quando se cansavam da monotonia dos seus papeis, inovavam e alteravam o guião a seu bel-prazer e, para quebrar a rotina, até invadiam as histórias uns dos outros.
Arrancar as histórias à memória criativa de Tarcísio - onde os personagens conviviam na maior liberdade - e dar-lhe morada num livro, era, para ele, como encarcerá-las numa prisão com pena perpétua: masmorra em papel caiado de branco com intransponíveis grades de tinta negra, amuralhada a cartão duro. Nunca mais os seus personagens teriam uma réstia de liberdade. Seriam para sempre escravos das determinações de um implacável e inflexível guião.
Entre a plateia atenta e, entusiasmado com a eloquência de Tarcísio e com a qualidade da história, tomei algumas notas. Poderiam servir-me de inspiração num qualquer futuro projeto, quem sabe…
-Não escreva a minha história, senhor – pediu-me no fim.
Rasguei então as minhas anotações. Porque as histórias de Tarcísio merecem continuar a encantar plateias. Mutáveis e livres como sempre foram.