Artigo 217

Têm coisas que não consigo explicar, nessa profissão vemos de tudo, e naquela noite eu fumava um cigarro encostado na porta da viatura enquanto ouvia o som abafado das botas do sargento se chocando contra o corpo do homem. Ele já não gemia.

Mais cedo próximo das duas horas da tarde, a primeira ronda depois do almoço, interceptamos o sujeitinho andando tranquilamente na rua, cabelinho engomado, sem camisa exibia tatuagens ofensivas. Um gosto azedo me subiu a garganta. Olhei para o sargento sentado ao meu lado, seus punhos se fecharam.

Depois de um silêncio profundo, resolvi que era minha vez de dar umas bordoadas no meliante. A luz dos faróis dianteiros iluminava a garoa fina. Como um animal, engatinhando, o homem cuspia sangue no gramado molhado enquanto apagava meu cigarro na sola do coturno.

Ex-presidiário, 35 anos e gostava de brincar com criancinhas. A última o desgraçado matou; deveria apodrecer na cadeia. Das outras vezes, por coação às famílias das vítimas as queixa foram retiradas. É sempre assim... Os malditos ainda cospem a tal da lei que os protegem na nossa cara.

Ouvi dois cliques e antes que pudesse perceber, o sargento apontava a pistola para o cara ainda caído pela agressão. O homem, antes tão senhor de si, voltou a ser criança, arregalou os olhos lacrimejantes, levantou o dedo indicador e soltou sua última frase “Deus tá vendo...”.

O estampido destoou dos barulhos da mata.

Às vezes fazemos coisas que não deveríamos fazer, mas... Sei lá. O sangue ferve né? O sargento me confidenciou que ficou arrepiado com a reação do homem... “Ele chorou!” me disse: “quando o bandido chora Deus condena”. Como um porco no abate, quando demora a morrer é porque alguém tem dó.

É, tem gente que acredita em cada coisa! Esse não estupra mais a filha de ninguém.

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 22/02/2015
Reeditado em 29/02/2016
Código do texto: T5146469
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