O salgado da carne
O primeiro passo, folhas transformadas em penas pelo vento. A mão, dedos curvos resignados em unhas. Esmaltes gastos. A voz, vibração feminina. Eclipse da dor. Dor da palavra falsa, da mentira comedida. Muros que ela construiu para não machucar a si mesma. Um toque. Dois toques. Atendeu ao celular. A voz era daquele que a amava. As mãos, aquelas firmes em sua cintura, do corpo aleivoso que a penetrava, eram de um estranho.
O que era o amor, senão a dor dos espinhos ruborizados pela flor. Aquele que a amava estranhou o comportamento da voz, o som que abafou um gemido, a percussão da sujeira despudorada da traição. Uma conversa dissonante. Nem um minuto. Desligaram os telefones. Religaram a dor.
No dia seguinte o calor. As tripas do universo digerindo todo bom coração. As hostes mundanas com lanças a perfurar diminutos Cristos. O sangue e a constatação. Ela respondeu uma pergunta retórica. Dia quente. Desconcertou, balançou as pernas, baixou o olhar e coçou a cabeça. Sinais transfigurados, reconfigurados. Uma mentira contada a si mesma.
Sonhos dispersos e olhos fechados. Mãos dadas. Entre almas desconjuntas. Aquele que a amava fingiu que estava tudo bem, virou-se e chorou. O salgado da carne, ele chorou. O ar dispersou toda onda de concretude e apego. Os anos doíam para aqueles que sangravam fidelidade.
O segundo passo, a ladeira de carne putrefata. Uma descida onde apenas um morreria. O de coração mais fraco.
E o verbo se fez carne.
E a carne se desfez em dor.