O tico-tico e o piano

Escutara aquele pipilar insistente naquela tarde mormacenta... Era-lhe tão familiar... Lembrava-se de tê-lo ouvido por toda a sua vida. Com certeza era o tico-tico...

A lembrança mais forte que esse trinado lhe trazia era a de suas aulas de piano logo após o almoço, nas tardes de verão... Pegava suas partituras e lá ia, sabedora de que a aula seria um novo fracasso. Continuava com as lições por insistência de seus pais, que pensavam assim garantir-lhe uma educação completa. Punha-se ao piano e ensaiava os primeiros acordes. O professor corrigia e corrigia, inúmeras e cansativas vezes. Seus dedos não tinham a agilidade necessária, não sentiam a música, tremiam, não alcançavam as teclas mais distantes... Conhecia-se bem e sabia que não tinha o menor talento para música. Enquanto dilacerava todas as esperanças de seu pobre professor, ouvia os trinados do tico-tico lá fora. Ele entoava sempre a mesma melodia e parecia provocá-la com sua musicalidade espontânea... Sua mente afastava-se completamente do instrumento, que sofria com as marteladas de seus dedos desengonçados, e ia lá para fora, brincar com o tico-tico...