Tem q ser Maria

Tem q ser Maria






Ele está sentado atrás de uma grande mesa. Pode imaginar de mogno, se quiser. Ele tem o tórax salientado mas suas pernas são finas. Não se pode vê-las, por causa da mesa. Seus cabelos lembram uma maré revolta e as sobrancelhas ameaçam, de longe ou de perto. Sua voz faria bonito tanto numa rádio como num pátio de colégio.

A fila de pretendentes dava volta na praça da Sé e escorria em direção ao Glicério.

Seguranças treinados, dispostos em locais estratégicos, incluindo as proximidades da mesa de mogno.

Entra a primeira moça.

- Oi, eu sou Silvana, minha mãe me chama de Silvânia mas minha avó queria que eu me chamasse Maria, tenho até uma prova da intenção dela, que em 1938...


- Próxima! – rugiu o homem por trás do mogno.

- Oiiii, sou Valdete, minha filha gosta de chiclete, eu adoro omelete e tenho uma tia que mora no Tibete...Faço rimas, gostou?

- Próxima!

- E aí, cara? Sou a Vera, tá ligado? Sou a maior gata, aqui ó... hei, que é isso?! Tira a mão de mim!!

Às vezes os seguranças precisam intervir.

- Oi, sou a Ercília, gosto mesmo é de cerzir...

- Próxima!

Ela reúne um tênue sombreado ao redor dos olhos negros e seus cabelos estão entre o azeviche e o castanho escuro.

- Olá. Sou Maria...

- Pare! – alertou ele – não diga mais nada. Nem um pio. Não me importa que seja um nome composto. Começa com Maria, certo? Balance a cabeça se for... Ah, perfeito. Sente-se, por favor.

Ela se sentou. Os cabelos quase negros iam até a altura dos ombros.

- Muito bem – rugiu ele, mal contendo a satisfação – você fez treinamento?

- Tenho treinado desde o dia em que nasci. Cada hora é uma coisa – a voz dela tremula suavidade no ambiente. Os seguranças prestam atenção.

- Numa crise você deve ser...? – ele indagou, a espera que ela completasse a resposta.

- O centro no meio das condições – respondeu ela, sem pestanejar.

Ele sorria por dentro. Por fora suas sobrancelhas ameaçavam.

- Pensamentos viciados são...?

- Memórias e expectativas – volveu ela.

Ele parecia descomunal, por trás da mesa.

- O que falta no Brasil?

Ela respirou, ao passo que o homem tamborilou no tampo da mesa.

- Exemplos – respondeu a moça, com um que de hesitação.

Ele, que numa fração de segundos mudara de semblante, disse:

- Sinto lágrimas na sua voz.

- Bons exemplos – retificou ela, como se não tivesse ouvido o comentário.

Finda uma breve pausa ambos se levantaram para tratar dos detalhes.

O espaço fora preenchido.



(Imagem: Asako Eguchi)

 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 13/01/2014
Reeditado em 02/05/2021
Código do texto: T4647840
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.