A sombra das nossas crianças

Crónica de tempos futuros que espero nunca cheguem a acontecer…

Na segunda metade do século XX, e após a mais mortífera de todas as guerras que abalou o mundo, as democracias viveram o seu maior e mais rico ciclo de prosperidade, que em termos globais se estendeu praticamente a todos os seus habitantes.

Além dos notáveis progressos tecnológicos que acabaram por tocar todos os sectores da sociedade, existia, pela primeira vez na história do mundo, uma noção de que a riqueza gerada deveria ser minimamente distribuída por todos os seus habitantes, sendo que nasceram assim sistemas de protecção social que permitiram que mesmo os mais pobres tivessem fugido da miséria endémica aos quais estavam aparentemente destinados.

A determinada altura parecia que a humanidade tinha abraçado definitivamente um caminho luminoso que faria com que o futuro fosse encarado de forma optimista de uma maneira realista e não com o tradicional temor e incerteza.

Mas foi no pico da riqueza que tudo começou a correr mal…

Querendo que a sua descendência tivesse as melhores condições para singrar, parte significativa da população abdicou de ter o elevado número de filhos que era tradicional ter, para gerar em média, por família, um, dois filhos. Desta maneira os recursos disponíveis estariam neles concentrados, e não dispersos por várias crianças, o que asseguraria que aos poucos nada iria faltar.

Durante alguns anos tudo correu bem, embora a população começasse lentamente a diminuir devido ao menor número de nascimentos e ao maior número de óbitos.

A população começou assim a envelhecer.

Até que uma série de crises económicas se começaram a suceder em vagas endémicas, com curtos períodos de prosperidade entre as vagas depressivas.

Apesar de tal ser óbvio, os decisores políticos chegaram tarde à conclusão que mais crianças significavam futuros trabalhadores que pagariam impostos, logo que iriam pagar grande parte dos custos da população idosa, já reformada e que por isso não gerava riqueza.

Deu-se então início a uma campanha que procurava fomentar o número de nascimentos, mas perante a perspectiva dos seus filhos irem ter um futuro incerto, muitos casais não arriscaram e ou não tiveram filhos ou tiveram apenas um.

Aumentaram-se então os incentivos à natalidade de uma forma bem significativa, e foram implementados também meios que asseguravam que a infância e adolescência seriam protegidas. Como as vagas de emprego começavam a sobejar devido à escassez de mão-de-obra, a mentalidade começou a mudar, e casais renitentes decidiram terem filhos, vários filhos.

Nessa altura algo de dramático aconteceu à escala planetária:

Uma taxa anormal de infertilidade, acompanhada por um anormal número de abortos espontâneos tocaram a maioria daqueles que queriam ou podiam terem filhos.

Fizeram-se estudos de todo o tipo para averiguar o que se passava, analisaram-se os alimentos, a qualidade do ar e dos solos, analisaram-se os níveis de stress da população, analisou-se tudo quanto poderia interferir com a infertilidade e a natalidade e operaram-se as mudanças achadas necessárias.

Mas apesar das melhorias os números de crianças nascidas eram largamente suplantados pelo número de óbitos, o que fazia com que fosse inexorável o envelhecimento e o consequente declínio da população mundial.

E assim o que era comum na minha infância tornou-se uma raridade: crianças, as ruas, os parques, os centros comerciais, os templos, cheios de crianças e dos seus sons alegres, bem como as estruturas construídas para crianças, como parques escolares, escolas e mesmo liceus.

As cidades tornaram-se assim ainda mais frias, ainda mais sombrias, ainda mais silenciosas, ainda mais tristes…

Eu e a minha mulher estamos entre aqueles que queríamos ter filhos mas que não podíamos gerar filhos, por razões que desconhecíamos.

Era um casal que se amava, junto há vários anos, mas que mantinha intacto o amor dos primeiros tempos, éramos um casal feliz, mas com uma sombra a pairar sobre nós, a sombra de um filho não existente…

Por isso, numa noite em que estava à janela a observar o céu limpo e quente de uma primavera acabada de chegar estranhei um som vago e algo distante que vinha até mim.

Achei tal impossível, tal irreal e pensando que era fruto da minha imaginação chamei a minha mulher para confirmar se estaria a ser vítima de uma espécie de alucinação.

Mas não, era mesmo real…:

Algures vindo de um emaranhado de prédios vinha o som de crianças a rir, crianças que nunca tínhamos visto na nossa cidade.

Apurámos a vista e começámos à procura delas.

Apesar dos nossos esforços combinados, não as vimos, vimos apenas as suas sombras.

Protegidas no seu pátio, duas crianças dançavam balé, dançavam de uma forma tão harmoniosa, tão bela que tornavam o espectáculo divino.

Reparámos então que das janelas vizinhas outros casais observavam as sombras, imensos casais, embevecidos, hipnotizados por aquela visão.

E de repente estranhos ficaram bem próximos ao observarem o que mais desejavam ter, felizes pela visão, jubilosos pela visão, mas infinitamente tristes tanto por não poderem terem filhos como por só poderem ver as sombras do seu maior desejo…

Morei imensos anos naquele bairro e por isso afirmo com toda a certeza que aquela noite foi a noite mais bela e ao mesmo tempo mais tenebrosa que aquele bairro viveu…

Entretanto mudámos de cidade, mudámos de vida e finalmente tivemos um filho.

Hoje ele brinca à noite na nossa varanda, sempre protegido por nós, mas sei que quando ele brinca outros o observam, mas observam apenas a sombra do desejo.

Sabendo disto sempre que podemos o local de brincar dele é nessa varanda, porque ao fazermos tal, damos aos nossos vizinhos o que não pode ser comprado:

Esperança da mudança, a esperança da vinda de dias melhores que terão que surgir depois desta época de trevas, terão que vir, porque senão é toda a humanidade que se irá transformar numa mera sombra…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 16/05/2013
Reeditado em 19/09/2014
Código do texto: T4293288
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