Humanidade – Versão alargada -

“Pela sua própria mão a humanidade corre o sério risco de se tornar mais uma espécie em vias de extinção…”

E do nada apareceram, do espaço profundo eles vieram, de forma inesperada, apanhando-nos completamente de surpresa, de tal ordem que a única coisa que pudemos fazer foi limitarmo-nos a resistir.

A resistir por todo o lado, pois eles estavam em todo o lado onde existíssemos ou pudéssemos existir, perseguindo-nos e encerrando os que se deixavam apanhar vivos em cidades que transformaram em enormes prisões.

Resistindo todos juntos, porque os seres humanos possuem essa notável característica de esquecerem as diferenças que há entre eles quando algo de comum os ameaça, e essa união deu-nos uma força que eles nitidamente não estavam à espera de encontrar…

Mas nós resistimos e retaliámos, indo ao ponto de ter conseguido libertar algumas dessas cidades e obrigando-os a retirar deixando-nos senhores de parte do planeta que nos tinham roubado, senhores da nossa própria casa. Depois de estabelecidos nas zonas libertadas fomos atrás dos invasores, dando-lhes a provar a mesma receita, mas indo mais longe, porque não fizemos prisioneiros, porque nos queríamos vingar de uma forma que eles recordassem suficientemente bem para não nos voltarem a invadir.

Foi então que tudo mudou, quando a atitude deles mudou.

Deixaram de meramente ocupar e de nos fazerem prisioneiros, passaram a destruir e a aniquilar-nos, todos, sem excepção, combatentes e não combatentes, homens mulheres crianças e velhos, toda a espécie humana passou a ser um alvo a abater.

Percebemos tal a partir do momento em que passaram a liquidar cidades inteiras sem previamente exigir a sua rendição como acontecia até ai…

Percebemos e retaliámos da mesma forma, mas as forças e os meios eram de tal ordem desequilibrados que era uma mera questão de tempo até sermos derrotados, até sermos extintos porque também percebemos que perseguiam a espécie e que a sua real intenção era livrarem-se dela…

Se é possível um cenário mais assustador, pessoalmente fiquei horrorizado ao saber que não se limitaram a perseguir-nos, perseguiram e destruíram tudo o que era humano ou feito por humanos, tudo quanto tivesse uma marca humana, todas as nossas realizações, querendo com isto apagar a nossa presença da face da Terra, da face do próprio universo.

Era pois um extermínio total e absoluto pois incluía a nossa própria memória…

Conscientes do fim alguns de nós desistiram, mas a maioria de nós continuou a resistir.

Não nos renderíamos, nunca nos renderíamos, era essa a nossa natureza.

Eles passaram a saber disso, e a violência sofreu um recrudescimento de tal ordem que todo o planeta ficou literalmente a ferro e fogo…

Mas o fim acabou por chegar, apercebemo-nos de tal quando os diversos grupos de resistentes foram caindo uns a seguir aos outros. Apercebemo-nos porque deixaram de responder quando os procurámos contactar.

Ficámos apenas nós…

Conseguimos escapar porque nos refugiámos num túnel de suporte do metropolitano de uma cidade já destruída.

Em circunstâncias normais não dariam connosco, mas estas circunstâncias estavam longe de serem normais e por isso quando começámos a ouvir sons vindos não só de cima mas de todos os lados, soubemos que eles estavam na limpeza final, porque só nos teriam descoberto se tivessem passado a este nível: depois de completada a sua missão principal passaram à derradeira fase, a fase em que perseguiriam até mesmo um de nós, porque mesmo um de nós poderia fazer toda a diferença e destruir o seu plano.

Mas éramos um alvo demasiado fácil de abater: pouco mais de cem, famílias inteiras incluídas, encurralados num espaço exíguo, cercados por todos os lados.

Mas não nos renderíamos, nunca nos renderíamos e levaríamos alguns deles connosco.

As horas vão passando e nada acontece.

Se eles viessem a caminho ouviríamos tal, ouviríamos o som de perfuração do solo e da pedra que nos separa deles.

Mas não, não ouvimos nada a não ser um som parecido àquele que fazem as brocas de menor dimensão.

De repente sou assaltado por um pressentimento:

Estão a criar pequenos orifícios no solo para de seguida lançarem gás venenoso por eles, a solução mais económica em termos de vidas do agressor.

Quando imensos buracos, não maiores do que uma moeda pequena, começam a surgir no túnel onde nos encontramos passo a ter a confirmação desse pressentimento.

Ainda tentamos tapar alguns, mas são tantos que não temos qualquer hipótese.

Chegou pois a altura de fazer o que tinha sido previsto para o momento final: preservar o último vestígio humano de que dispomos, o único registo de nós que sobreviveu a toda esta destruição.

Não sei o que é, sei apenas que me recomendaram esconder tal num cofre que foi construído para o efeito, um cofre que aguentará tudo, preparado para resistir a tudo.

Disseram-me apenas que é a nossa derradeira memória e que deverá ser preservada a todo e qualquer custo.

Faço tal e depois sento-me pois não há nada a fazer a não ser esperar…

- Senhor, detectámos o último reduto de insurgentes.

-Localização?

-Interior de uma velha cidade abandonada.

-Não percebo…passámos todas as cidades a pente fino e eles ainda resistem? Não percebo…

-Encontram-se nos subterrâneos, no seu grau mais inferior. Eu sei que já por lá andámos, mas esta gente dispõe de uma capacidade de adaptação perfeitamente notável, eles arranjam sempre novas formas de não os encontrarmos, mas sem dúvida que estes são os últimos de todos…

Procedemos da maneira habitual…?

- Conhece o Protocolo que temos para eles…

-Sem deixar qualquer tipo de vestígio?

-Absolutamente nenhum, depois de actuarem é como se eles nunca tivessem existido…Volte-me a contactar apenas se tiver algo relevante a reportar, neste momento tenho em mãos o plano final de reconstrução, o que me ocupa o tempo todo, repito que só me deve voltar a contactar por motivos excepcionais…

O Protocolo tinha sido expressamente criado para lidar com os insurgentes.

Uma primeira versão surgiu da observação dos seus hábitos e rotinas, uma observação feita à distância sem que eles soubessem que estavam a serem vigiados e estudados.

Quando aplicado esse Protocolo falhou em toda a linha.

Apesar da severidade, ainda assim revelou-se demasiado brando quando tivemos que lidar com eles no seu terreno.

Os insurgentes mostraram-se muito mais tenazes, muito mais resistentes, do que supúnhamos – Perante uma ameaça comum, eles esqueceram as muitas diferenças que os separavam e uniram, unificaram os diferentes grupos que os compunham num só grupo, o grupo que nos enfrentou e nos resistiram com tal eficácia que foi necessária uma revisão urgente do Protocolo original, pois todo o nosso plano de acção estava a um passo do malogro total, pelo simples facto de termos subestimado o nosso oponente, apesar de termos empenhado uma parte importante dos nossos recursos na concepção e execução desse Protocolo e para chegar ao local da sua aplicação.

No começo a nossa intenção fora apenas a de neutralizar os insurgentes de forma a que não constituíssem qualquer tipo de ameaça para nós, mas quando o Protocolo falhou descobrimos que a forma mais eficaz de neutralizar os insurgentes passava pelo extermínio destes e para fazer tal teríamos que aplicar a totalidade máxima dos nossos recursos, porque só assim conseguiríamos quebrar a resistência deles, que aumentara consideravelmente quando a esta aliaram o desejo de, além de nos vencerem, se quererem vingar de nós, se vingarem dos ocupantes, dos invasores, de os perseguirem até ao local de onde tinham vindo.

Impunha-se então o extermínio porque eles tinham deixado de ser uma potencial ameaça à nossa existência, eles tinham passado a ser uma ameaça bem real à nossa existência.

A opção do extermínio repugnava-nos, essa não era a nossa natureza, mas passou a ser a única, pois seriamos nós os exterminados se não levássemos até ao fim a tarefa que nos trouxera até aqui.

O Protocolo foi então revisto e os nossos recursos totalmente aplicados, com a inevitável escalada de violência e de destruição, mas apesar deles se terem apercebido das nossas intenções e de passarem a resistir ainda com mais vigor, a desproporção de meios e de forças era enorme e por isso foi uma mera questão de tempo até termos alcançado a vitória total e absoluta.

Mas essa vitória implicou um terrível preço: descobrimos que não éramos a raça pacífica que pensávamos ser, descobrimos que ao sermos capazes de exterminar algo éramos iguais aquela que tanto criticáramos, e pelo fim da qual tanto nos empenháramos.

Como seria o nosso futuro a partir de então, como agiríamos…?

Não sei…

A operação de extermínio era confidencial e por isso quase ninguém sabia dela, mas perturbava-me saber que dispúnhamos dessa capacidade de aniquilação, que poderia vir ao de cima entre qualquer um de nós se a ocasião se proporcionasse, pois foi nesta ocasião que ela apareceu e nada me garantia que isto fosse um fenómeno localizado e difícil de repetir…

Tinha chegado ao fim esta tragédia, eu comandava o acto final dela, seria eu a encerrar o seu último capítulo.

Os derradeiros insurgentes não eram mais do que cem, com as famílias incluídas, incluídas também na aplicação do Protocolo, porque nesta raça todos eram considerados insurgentes, porque todos resistiam e tinham a capacidade de se vingarem se sobrevivessem.

Estavam concentrados no nível inferior de um subterrâneo que em tempos servira de transporte colectivo, sendo que tinham permanecido indetectáveis porque os nossos mapas eram omissos nessa parte do subterrâneo, porque esta tinha sido concebida como apoio aos túneis por onde circulava o tal transporte, e por isso achada irrelevante para figurar num mapa.

Só déramos com eles porque depois de limpas todas as cidades ou eventuais locais onde se pudessem esconder, começámos a verificar os locais mais improváveis, tendo assim encontrado este grupo, cercado por todos os lados mas que continuava a resistir e resistiria até ao fim.

O que se passaria a seguir era simples, mortalmente simples: eu daria a ordem para se lançar um gás venenoso nos subterrâneos, e logo a seguir mandaria detonar um engenho explosivo que incineraria os eventuais sobreviventes.

O gás servia como um acto de misericórdia, iria permitir-lhes terem uma morte sem dor, sendo que o engenho se limitaria a completar o serviço, sem que nisso perdesse ainda mais gente que estava às minhas ordens, pois estava farto disto tudo, destas mortes todas, quer deles, quer nossas e queria acabar com isto de uma vez por todas.

Quando tudo por fim acabou um dos meus subordinados, que enviara aos subterrâneos confirmar esse fim, trouxe tudo o que restava daquela espécie:

Uma gravação com imagens e sons, uma gravação guardada por um dos últimos a morrer num local que fora concebido para resistir a tudo, um local onde seriam guardadas a últimas memórias humanas, porque a memória passa por ser a derradeira maneira de se resistir, porque enquanto existem memórias de algo desaparecido esse algo não desapareceu de vez, porque continua nos locais onde foi registado ou a estar bem vivo na mente de quem viu essas memórias…

Era uma gravação muito breve, mas uma gravação de um enorme simbolismo pois era a gravação do momento em que um homem pela primeira vez pisou solo não terrestre e pronunciou algo que deveria perdurar pela eternidade

“É um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade”

Tinha o poder e o dever de destruir essa gravação, mas a responsabilidade era de tal ordem que preferi que fosse o meu chefe máximo a fazer tal, contactando-o e colocando-o a par deste último problema.

Ao invés de ser repreendido por o incomodar, ele compreendeu a minha hesitação e falou-me de uma maneira bem pedagógica que justificava tudo quanto se tinha passado:

- Essa gravação para nós é o mais importante de todos os registos que os seres humanos efectuaram, porque foi nessa altura que nos apercebemos que a humanidade tinha a capacidade de se deslocar no espaço e com o tempo de começar a explorar o universo, dispondo de um potencial que os faria um dia chegarem até nós.

Há muito que vigiávamos e estudávamos a humanidade, e por isso sabíamos bem demais como tinham agido quando as civilizações mais poderosas atravessaram mares e continentes e colonizaram o resto do seu mundo, sabíamos que mais do que o conhecimento, o seu primeiro instinto seria a destruição de civilizações, de gentes que consideravam inferiores a si, sendo que temíamos que aplicassem este tipo de procedimentos quando nos encontrassem.

Éramos e ainda somos uma raça pacífica, mas sabíamos bem que se não agíssemos estaríamos a condenar-nos.

Por isso se criou o Protocolo destinado a neutralizar o perigo humano antes deste se revelar demasiado poderoso, por isso viajámos desde o fim do espaço até à Terra de forma a garantir a nossa sobrevivência.

O que fizemos foi ignominioso, mas não dispúnhamos de alternativa, simplesmente porque era a nossa raça ou ela…

Seriamos duas raças perfeitamente compatíveis, e que poderiam coabitar pacificamente se a humanidade não tivesse a desprezível tendência de agir demasiadas vezes como homicida e não como alguém que procurava acima de todas as outras coisas ir mais longe, dar azo à sua sede de conhecimento, perdendo demasiado tempo em assuntos sem interesse nenhum e a matar-se entre si.

Não podíamos correr o risco de aplicarem esta forma de agir fora do seu planeta e por isso agimos da forma que achámos mais correcta, ou se quiser, entre os diversos males que tínhamos como opção optámos pelo mal menor.

Quanto a essa gravação…

Não será destruída, ficará nos nossos registos como a única prova que um dia a humanidade existiu, um registo simbólico pois foi ele que chamou a nossa atenção e que determinou a nossa acção.

Os vestígios humanos no seu planeta, os ainda sobreviventes, em breve desaparecerão, eles não foram feitos para durar, em breve estarão reduzidos a mero pó indistinguível de outro pó qualquer, porque ao dar azo aos seus piores instintos, e não ao belo que existia dentro dela, era uma mera questão de tempo até a humanidade se transformar em pó, porque quem vive focado em algo que não vale a pena está destinado a ter uma existência breve e a nada restar dela a não ser mero pó…

Compreendi bem o que o meu chefe tinha dito, posso dizer que compreendi bem demais, pois quando acabámos de falar, e à revelia do que ele me tinha ordenado, eu destruí essa gravação sabendo que depois da forma como tinha agido era uma mera questão de tempo até a minha raça ter o destino da humanidade…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 18/03/2013
Código do texto: T4194589
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