Humanidade

“Pela sua própria mão a humanidade corre o sério risco de se tornar mais uma espécie em vias de extinção…”

- Senhor, detectámos o último reduto de insurgentes.

-Localização?

-Interior de uma velha cidade abandonada.

-Não percebo…passámos todas as cidades a pente fino e eles ainda resistem? Não percebo…

-Encontram-se nos subterrâneos, no seu grau mais inferior. Eu sei que já por lá andámos, mas esta gente dispõe de uma capacidade de adaptação perfeitamente notável, eles arranjam sempre novas formas de não os encontrarmos, mas sem dúvida que estes são os últimos de todos…

Procedemos da maneira habitual…?

- Conhece o Protocolo que temos para eles…

-Sem deixar qualquer tipo de vestígio?

-Absolutamente nenhum, depois de actuarem é como se eles nunca tivessem existido…Volte-me a contactar apenas se tiver algo relevante a reportar, neste momento tenho em mãos o plano final de reconstrução, o que me ocupa o tempo todo, repito que só me deve voltar a contactar por motivos excepcionais…

O Protocolo tinha sido expressamente criado para lidar com os insurgentes.

Uma primeira versão surgiu da observação dos seus hábitos e rotinas, uma observação feita à distância sem que eles soubessem que estavam a serem vigiados e estudados.

Quando aplicado esse Protocolo falhou em toda a linha.

Apesar da severidade, ainda assim revelou-se demasiado brando quando tivemos que lidar com eles no seu terreno.

Os insurgentes mostraram-se muito mais tenazes, muito mais resistentes, do que supúnhamos – Perante uma ameaça comum, eles esqueceram as muitas diferenças que os separavam e uniram, unificaram os diferentes grupos que os compunham num só grupo, o grupo que nos enfrentou e nos resistiram com tal eficácia que foi necessária uma revisão urgente do Protocolo original, pois todo o nosso plano de acção estava a um passo do malogro total, pelo simples facto de termos subestimado o nosso oponente, apesar de termos empenhado uma parte importante dos nossos recursos na concepção e execução desse Protocolo e para chegar ao local da sua aplicação.

No começo a nossa intenção fora apenas a de neutralizar os insurgentes de forma a que não constituíssem qualquer tipo de ameaça para nós, mas quando o Protocolo falhou descobrimos que a forma mais eficaz de neutralizar os insurgentes passava pelo extermínio destes e para fazer tal teríamos que aplicar a totalidade máxima dos nossos recursos, porque só assim conseguiríamos quebrar a resistência deles, que aumentara consideravelmente quando a esta aliaram o desejo de, além de nos vencerem, se quererem vingar de nós, se vingarem dos ocupantes, dos invasores, de os perseguirem até ao local de onde tinham vindo.

Impunha-se então o extermínio porque eles tinham deixado de ser uma potencial ameaça à nossa existência, eles tinham passado a ser uma ameaça bem real à nossa existência.

A opção do extermínio repugnava-nos, essa não era a nossa natureza, mas passou a ser a única, pois seriamos nós os exterminados se não levássemos até ao fim a tarefa que nos trouxera até aqui.

O Protocolo foi então revisto e os nossos recursos totalmente aplicados, com a inevitável escalada de violência e de destruição, mas apesar deles se terem apercebido das nossas intenções e de passarem a resistir ainda com mais vigor, a desproporção de meios e de forças era enorme e por isso foi uma mera questão de tempo até termos alcançado a vitória total e absoluta.

Mas essa vitória implicou um terrível preço: descobrimos que não éramos a raça pacífica que pensávamos ser, descobrimos que ao sermos capazes de exterminar algo éramos iguais aquela que tanto criticáramos, e pelo fim da qual tanto nos empenháramos.

Como seria o nosso futuro a partir de então, como agiríamos…?

Não sei…

A operação de extermínio era confidencial e por isso quase ninguém sabia dela, mas perturbava-me saber que dispúnhamos dessa capacidade de aniquilação, que poderia vir ao de cima entre qualquer um de nós se a ocasião se proporcionasse, pois foi nesta ocasião que ela apareceu e nada me garantia que isto fosse um fenómeno localizado e difícil de repetir…

Tinha chegado ao fim esta tragédia, eu comandava o acto final dela, seria eu a encerrar o seu último capítulo.

Os derradeiros insurgentes não eram mais do que cem, com as famílias incluídas, incluídas também na aplicação do Protocolo, porque nesta raça todos eram considerados insurgentes, porque todos resistiam e tinham a capacidade de se vingarem se sobrevivessem.

Estavam concentrados no nível inferior de um subterrâneo que em tempos servira de transporte colectivo, sendo que tinham permanecido indetectáveis porque os nossos mapas eram omissos nessa parte do subterrâneo, porque esta tinha sido concebida como apoio aos túneis por onde circulava o tal transporte, e por isso achada irrelevante para figurar num mapa.

Só déramos com eles porque depois de limpas todas as cidades ou eventuais locais onde se pudessem esconder, começámos a verificar os locais mais improváveis, tendo assim encontrado este grupo, cercado por todos os lados mas que continuava a resistir e resistiria até ao fim.

O que se passaria a seguir era simples, mortalmente simples: eu daria a ordem para se lançar um gás venenoso nos subterrâneos, e logo a seguir mandaria detonar um engenho explosivo que incineraria os eventuais sobreviventes.

O gás servia como um acto de misericórdia, iria permitir-lhes terem uma morte sem dor, sendo que o engenho se limitaria a completar o serviço, sem que nisso perdesse ainda mais gente que estava às minhas ordens, pois estava farto disto tudo, destas mortes todas, quer deles, quer nossas e queria acabar com isto de uma vez por todas.

Quando tudo por fim acabou um dos meus subordinados, que enviara aos subterrâneos confirmar esse fim, trouxe tudo o que restava daquela espécie:

Uma gravação com imagens e sons, uma gravação guardada por um dos últimos a morrer num local que fora concebido para resistir a tudo, um local onde seriam guardadas a últimas memórias humanas, porque a memória passa por ser a derradeira maneira de se resistir, porque enquanto existem memórias de algo desaparecido esse algo não desapareceu de vez, porque continua nos locais onde foi registado ou a estar bem vivo na mente de quem viu essas memórias…

Era uma gravação muito breve, mas uma gravação de um enorme simbolismo pois era a gravação do momento em que um homem pela primeira vez pisou solo não terrestre e pronunciou algo que deveria perdurar pela eternidade

“É um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade”

Tinha o poder e o dever de destruir essa gravação, mas a responsabilidade era de tal ordem que preferi que fosse o meu chefe máximo a fazer tal, contactando-o e colocando-o a par deste último problema.

Ao invés de ser repreendido por o incomodar, ele compreendeu a minha hesitação e falou-me de uma maneira bem pedagógica que justificava tudo quanto se tinha passado:

- Essa gravação para nós é o mais importante de todos os registos que os seres humanos efectuaram, porque foi nessa altura que nos apercebemos que a humanidade tinha a capacidade de se deslocar no espaço e com o tempo de começar a explorar o universo, dispondo de um potencial que os faria um dia chegarem até nós.

Há muito que vigiávamos e estudávamos a humanidade, e por isso sabíamos bem demais como tinham agido quando as civilizações mais poderosas atravessaram mares e continentes e colonizaram o resto do seu mundo, sabíamos que mais do que o conhecimento, o seu primeiro instinto seria a destruição de civilizações, de gentes que consideravam inferiores a si, sendo que temíamos que aplicassem este tipo de procedimentos quando nos encontrassem.

Éramos e ainda somos uma raça pacífica, mas sabíamos bem que se não agíssemos estaríamos a condenar-nos.

Por isso se criou o Protocolo destinado a neutralizar o perigo humano antes deste se revelar demasiado poderoso, por isso viajámos desde o fim do espaço até à Terra de forma a garantir a nossa sobrevivência.

O que fizemos foi ignominioso, mas não dispúnhamos de alternativa, simplesmente porque era a nossa raça ou ela…

Seriamos duas raças perfeitamente compatíveis, e que poderiam coabitar pacificamente se a humanidade não tivesse a desprezível tendência de agir demasiadas vezes como homicida e não como alguém que procurava acima de todas as outras coisas ir mais longe, dar azo à sua sede de conhecimento, perdendo demasiado tempo em assuntos sem interesse nenhum e a matar-se entre si.

Não podíamos correr o risco de aplicarem esta forma de agir fora do seu planeta e por isso agimos da forma que achámos mais correcta, ou se quiser, entre os diversos males que tínhamos como opção optámos pelo mal menor.

Quanto a essa gravação…

Não será destruída, ficará nos nossos registos como a única prova que um dia a humanidade existiu, um registo simbólico pois foi ele que chamou a nossa atenção e que determinou a nossa acção.

Os vestígios humanos no seu planeta, os ainda sobreviventes, em breve desaparecerão, eles não foram feitos para durar, em breve estarão reduzidos a mero pó indistinguível de outro pó qualquer, porque ao dar azo aos seus piores instintos, e não ao belo que existia dentro dela, era uma mera questão de tempo até a humanidade se transformar em pó, porque quem vive focado em algo que não vale a pena está destinado a ter uma existência breve e a nada restar dela a não ser mero pó…

Compreendi bem o que o meu chefe tinha dito, posso dizer que compreendi bem demais, pois quando acabámos de falar, e à revelia do que ele me tinha ordenado, eu destruí essa gravação sabendo que depois da forma como tinha agido era uma mera questão de tempo até a minha raça ter o destino da humanidade…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 17/03/2013
Reeditado em 17/03/2013
Código do texto: T4193632
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