A última vez em que previ a dor
De uma coisa eu tenho certeza: ela estava me vendo, do outro lado do salão. Havia uns bons vinte metros e vinte vezes mais pessoas entre nós, mas ela me via; então, caprichei: girei e girei a morena de ancas quarto de milha e cheiro açucarado, depois puxei a moça para bem perto e moldei meu corpo ao dela, seguindo o ritmo do xote como quem faz amor. Quando olhei em volta (e por várias vezes) ela havia sumido. Mais tarde - ou muito cedo - vi-a de novo, sentada placidamente no banco perto do acesso aos banheiros. Permiti-me mirar dentro de seus olhos e o âmbar de sempre me fitou de volta - ou quase: neles um ponto sem cor fez subir um arrepio pela espinha até os pelos da nuca. Curvei a cabeça e disse qualquer coisa à morena, que riu; ri, igual e alto.
A noite foi como as noites são; aquela era noite de lua nova.
Quando a briga começou - não sei por quê - nem como - nem com quem - lembro de ter visto uma lâmina luzindo perto do meu pescoço, perto demais... Lembro também dos olhos castanhos cheios d'água, como um lago sob a lua cheia. Depois a luz foi se acabando e o vazio ambarino me engoliu inteiro.
"Bem feito!", pensei. "Quem mandou ser infeliz?"