As sombras de Hiroxima - Crónicas de um tempo que espero que nunca chegue…

Estamos só os dois perante um adversário que não se vê, mas que não pode ser muito mais numeroso do que nós, e que é o último adversário na ultima guerra que a humanidade terá de enfrentar…

“Ultima Guerra” porque nós e eles somos os últimos humanos que existem, e por isso depois de eliminado qualquer um dos lados a guerra terá um fim…

Por entre o silêncio e a neblina cinzenta avermelhada que cobre este vale esperamos por qualquer movimento, qualquer som que nos indique tanto as intenções como o número do inimigo…

O ambiente é de uma tensão extrema, e se calhar por isso começo a divagar, a filosofar enquanto os meus olhos estão pregados na linha do horizonte por onde eles virão…

- Se somos os últimos humanos porque diabo nos matamos em vez de aliarmos esforços e de assim melhor garantir a nossa sobrevivência, porque nos deixamos levar pelo lado homicida quando o nosso instinto natural nos levaria a unirmo-nos para sobreviver em conjunto…? -

É uma bela questão sem dúvida, tem toda a pertinência, tem toda a lógica, que deixou de fazer sentido quando se começaram a fazerem sentir os efeitos colaterais inesperados das bombas…

No meu primeiro momento de lucidez, depois das bombas começarem a rebentar, começo a reflectir calmamente, recuando por isso mentalmente alguns anos, mesmo antes do desastre que nos levou até aqui, que nos levou ao último dia de alguns dos últimos humanos…

Quando a politica de industrialização e produção em massa começou a revelar de forma inevitável os seus efeitos, e correndo toda a natureza um sério risco de sobrevivência, foram por fim tomadas medidas que limitavam a poluição, esperando que a capacidade regeneradora da natureza fizesse o resto e o planeta pudesse voltar a níveis de tóxicos anteriores, que permitissem a sobrevivência, sem contudo obstar à continuação da produção industrial. Tal foi parcialmente conseguido, mas não totalmente…: com essas novas politicas ganhámos alguns séculos, mas a atmosfera estava de tal ordem contaminada que alguns tóxicos nunca seriam de todo eliminados, e, pior, a atmosfera possuía um manto invisível que impedia que alguns elementos se dissipassem, criando assim uma espécie de escudo que faria com que novos gases se concentrassem sobre o planeta…Como a proibição foi efectiva, os níveis mantiveram-se, mas num equilíbrio demasiado precário, e assim todos pudemos sobreviver, mas bastava apenas um pequeno descuido para o desastre se abater sobre a espécie humana…

E o desastre aconteceu, numa consequência indirecta da apetência da humanidade em teimar em não aprender as lições do seu passado, e por isso de forma recorrente cair nos erros desse passado…

Quando passámos a ignorar as lições de Hiroxima e Nagasaki, quando deixámos de recordar o dia em que estas cidades foram bombardeadas atomicamente, esquecemo-nos das suas horríveis consequências, esquecemo-nos que a humanidade jurou a si própria, e a bem de si própria, não voltar a repetir aqueles holocaustos…

Demos assim um passo gigante rumo à destruição quando ignorámos o tabu nuclear, e as armas passaram a serem mantidas para usar numa crise e não apenas para dissuadir o adversário de as usar, uma estratégia de “equilíbrio de terror” que tinha resultado durante décadas, porque todos tinham na memória as indescritíveis imagens de horror das cidades japonesas bombardeadas e dos seus nefastos efeitos nos humanos, mesmo na descendência daqueles que tinham sido bombardeados…Ignorámos que as células guardam os seus efeitos, e que depois das bombas rebentarem é que começaria o verdadeiro calvário dos sobreviventes…

E assim bastou uma crise banal, que noutros tempos seria resolvida com alguma diplomacia ou, no máximo, com algumas armas convencionais, e nunca mais do que isso…

Quando banalizámos o nuclear as bombas rebentaram por todo o planeta, pois mesmo as nações menores se acharam no direito de as usar para resolver as suas velhas questões com os vizinhos de ódios ancestrais…

Nos meses seguintes aos bombardeamentos, e estando a civilização humana reduzida aos previsíveis escombros, quanto tentámos reconstruir essa civilização é que nos apercebemos do que tínhamos causado, com o auxilio dos raros cientistas que tinham sobrevivido ao desastre…

Depois dos bombardeamentos nenhuma mulher conseguira engravidar, e a capacidade humana de interagir em grandes grupos tinha desaparecido, de tal ordem que no máximo os grupos humanos tinham 10 pessoas, que se confrontavam até à morte com outros grupos, mesmo que fossem pessoas com que lidáramos toda a nossa vida, mesmo que se tratasse de família…

Intrigados por esta serie de perturbadoras disfunções, que impediam de facto qualquer reconstrução, os homens da ciência analisaram tudo o que podiam, e chegaram á conclusão que a atmosfera do planeta possuía uma espécie de “capacete” que impedia os efeitos da radioactividade se dissiparem, e condenava por isso a humanidade a ser estéril e a impedia de alguns processos mentais ou mesmo instintivos básicos, como por exemplo, a de se viver em grupo de forma a possibilitar a sobrevivência individual, o que de certa forma era uma irracionalidade que nos condenava de facto a todos…

E foi assim que por todo o planeta a humanidade estéril se matou entre si até quase à extinção, porque cada humano abatido era insubstituível…

Porque eu sei e sinto que os homens e mulheres que estão algures à minha frente são meus semelhantes, sei que são os últimos, sei que juntos poderíamos começar tudo de novo, mas acima de todos estes raciocínios está uma necessidade premente, quase fisiológica, de os querer matar, de querer eliminar a concorrência, porque só nós é que poderemos prevalecer, não interessando mais nada…

O fim da razão, a prevalência da destruição acima de todas as coisas, inclusive da nossa própria sobrevivência…

É este o nosso legado, é este o preço por termos esquecido as lições de Hiroxima…

Do nevoeiro saem por fim alguns vultos de forma humana, mas que não são nada, são apenas meros vultos, meras sombras impessoais que devo dissipar pois só a minha sombra devera prevalecer sobre todas as outras…

Nota:

Os efeitos da radioactividade sobre o homem e sobre a natureza são de tal ordem nocivos, que diversos relatórios e estudos feitos por cientistas desde 1945 (o ano da primeira deflagração atómica sobre humanos) ainda hoje são considerados “Classificados” e por isso nunca serão do conhecimento público, pois além de se temer uma revolta da opinião pública contra quem lançou as bombas sobre as cidades, receia-se também que essa mesma opinião pública queira ver banida a tecnologia nuclear, seja ela civil ou militar…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 07/08/2012
Reeditado em 08/08/2012
Código do texto: T3818299
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