Sapatos Para Um Anjo
Pela segunda vez naquele dia Maria, sob o sol escaldante voltou para casa carregando o colo a filha com pouco mais de dois anos de idade.
Sob a poeira vermelha da estrada rodeada de cafezais em flor, entre idas e vindas caminhara mais de trinta quilômetros.
Benzimentos, rezas, remédios caseiros, farmacêutico e por fim o doutor.
Nada cortou a diarreia da criança..
Ao cair da tarde, quanto chegou na porteira de entrada do sítio onde morava cansada, aos prantos sentiu a filha respirar fundo - o último suspiro.
Desesperada Maria gritou para o vazio, em seguida apertando aquele anjo entre os braços ajoelhou-se na terra fria clamando a Deus forças para suportar tamanha dor.
Desceu o caminho de terra e pedriscos até a casa simples.
Não disse uma palavra - apenas o pranto desmedido. Os filhos maiores correram ao seu encontro.
Calada colocou o pequeno corpo inerte sobre a cama de casal, cobriu com um alvo lençol de algodão.
Enxugou a face, abraçou um a um os filhos – 11 ao todo.
Em seguida pegou a velha sacola de palha, com o olhar totalmente perdido disse com um fio de voz que precisaria voltar para a cidade.
Todos ficaram sem entender. Em poucos instantes a casa cheia, as mulheres dos colonos, a criançada - todos queriam ver a anjinho coberto com o alvo lençol.
O pai voltado apressado da roça procurou o registro de nascimento da menina para cuidar do enterro.
Chamou o filho mais velho, pediu que ajudasse a colocar os arreios no Gibão, o cavalo alazão, inseparável companheiro.
Entre lágrimas carregou a pesada cruz da perda, juntando o pouco das forças para acalmar as crianças.
Na aglomeração que se formara ninguém deu conta de que a pobre mãe havia saído. Quando perceberam, pelas contas há mais de duas horas ela havia desaparecido.
No início da noite, casa cheia todos notou a chegada de Maria desfigurada pela dor, com uma caixinha embrulhada em papel manilha cor-de-rosa.
Fez-se um silêncio mortal.
Com os pés inchados, os olhos turvos de tanto chorar, a alma rasgada de dor, foi até o quarto.
- Rosalba vem cá...
Chama pela madrinha da menina com um fio de voz.
- Sente-se na cama Rosalba, dito isto entrega o embrulho para a comadre e pede para que abra o pacote.
Ao abrir o pequeno embrulho na caixa de papelão cheirando a novo um par de sapatinhos de verniz na cor branca, solas de couro, botãozinho forrado de lado para fechar a pulseirinha e o par de meias - alvas como a paz.
Em seguida pediu para a comadre calçar os pezinhos do anjo inerte.
Rosalba fez o sinal da cruz, depois o padre, filho, espírito santo, descobriu os pés da menina, atendeu o pedido da mãe.
Ao terminar estendeu novamente o lençol que cobriria o anjo até a manhã do dia seguinte.
- Luzia, (referindo-se à filha), sempre me pedia sapatinhos brancos, nunca pude comprar!
Ficava encantada quando nas missas de domingo via as meninas calçadas.
Esta era a sua vontade, mas nunca deu para atender...
Dito isso Maria saiu do quarto, acendeu as lamparinas
de querosene, procurou o terço, o livro de rezas, as velas brancas e vestiu-se de coragem.
Aninhou os filhos ao redor da velha mesa de jacarandá à espera do marido que traria a urna - branca como o alvo lençol, as meias e os sapatinhos
(Ana Stoppa)
(baseado em fatos reais, anos 40 )