As estrelas do centro da Terra…
É-nos dito, é-nos ensinado, que só podemos encontrar estrelas no céu…
Nós descobrimos o inverso…
Foi a vertigem pelo supremo absoluto que representava o firmamento, e o que pensávamos estar para além dele, que nos fez gastar, que nos fez consumir, o tempo que dispúnhamos e de que não dispúnhamos, a ver o céu, a procurar nele o sentido que sabíamos possuir, mas que não sentíamos…
Queríamos ir para além do mero contemplar sóis distantes, alguns deles já mortos, mas cuja enorme distância espacial fazia com que os víssemos depois de extintos, pois eram de tal ordem longínquos que a sua luz quando chegou até nós já os encontrou mortos…
Nós queríamos ver o céu para além do nosso olhar, queríamos sentir tal com a alma…
Ávidos, ou meramente perdidos, por essa vontade passávamos então o nosso tempo em busca do que nunca tínhamos sentido, mudando várias vezes de local por todo o planeta, de forma a que “algures” pudéssemos sentir tal…
Anos seguidos desta espécie de obsessão, ou se quiserem, de utopia teve o custo de nos afastar da família, dos amigos, que descurámos, ao ponto de, nas raras ocasiões em que os recebíamos em nossa casa, as conversas irem, de forma invariável, dar ao nosso único interesse, o que acabou por afastar as pessoas ainda mais de nós, e por isso, quando convidávamos essas pessoas para aparecerem, as desculpas para não poderem vir passaram a serem mais do que muitas, e por isso a nossa vida acabou por se resumir a nós os dois e as relações sociais de conveniência que todos possuímos nos nossos empregos…
Mas com o tempo esse mundo com duas pessoas acabou por nos bastar, por ser o suficiente, dado que nada víamos no resto das pessoas que nos despertasse o interesse de lidar com elas…
O céu já era imensamente vasto, e descobrir nele o sentido que procurávamos era pois o todo que nos bastava, ao ponto de ocupar por completo algo de tão fundamental a um ser humano como é, ou deveria ser, a socialização com outros seres humanos…
Até ao dia que nos apercebemos realmente que nos estávamos a afastar, porventura de forma definitiva, que ao procurarmos o sentido nas estrelas estávamos prestes a perder a humanidade, e esse sentido sem a humanidade não tinha lógica nenhuma, não possuía nenhum sentido…seria um sentido oco, vazio, inútil…
Tivemos então a real percepção de que ao invés de uma paixão tínhamos um vício, pelo que auto-impusemos a nós próprios uma cura, uma terapia de choque algo radical que nos desintoxicasse, que nos desabituasse, para nos devolver a humanidade…
Aturdidos e chocados pela repentina e violenta percepção do que nos acontecera, em vez de pensarmos racionalmente no assunto, pensámos de forma emocional e por isso nada racional, e fomos assim de um extremo ao outro…
Ao invés de explorarmos o sentido no céu, de deixarmos de todo de procurar esse sentido, apenas mudamos de local, e decidimos procurar tal nas entranhas da Terra, nas grutas, nas cavernas…justificando tal com a socialização que tal implicava, porque a exploração de cavernas para amadores era feita sempre em grupo…o que nos faria, mesmo que de forma involuntária, socializarmos…
Mas o tal sentido estava demasiado entranhado para desaparecer de uma maneira tão fácil, de tal ordem que em breve nos sentíamos entediados pela nova actividade e pelas pessoas, que iam ver rochas, e pouco mais, ao passo que nos íamos em busca de algo mais…
Não reconhecendo, não querendo aceitar, o nosso fracasso, decidimos continuar de uma forma ainda mais empenhada a exploração possível do interior do planeta.
Foi assim que decidimos ir mais além do que era suposto, decidindo explorar as cavernas mais incomuns, ou pelo menos, menos visitadas, muito para além do turismo de massas, as grutas só ao alcance de alguns, um grupo que não se importava de passar as suas férias (o tempo a que elas dedicávamos…) fechados semanas dentro de cavernas e não a apanhar sol numa qualquer praia ou no campo, que não se importavam de passarem imenso tempo na quase mais profunda escuridão, no mais absoluto silêncio, o que nos fez que caminhássemos por outra via para a tal falta de socialização que nos fez abandonar as estrelas…
No centro da Terra ao menos não estávamos sob o olhar de mais ninguém, não estaríamos sob o seu escrutínio, pois ao passo que no exterior há sempre forma de sermos vistos (seres humanos, meios aéreos ou mesmo satélites…) debaixo de terra as probabilidades de nos verem eram infinitamente menores…
Mas mesmo esses locais em breve nos entediaram e tivemos necessidade de ir ainda mais longe…
Passámos ao patamar seguinte, no limiar da fronteira da lei e do perigo…
Aqueles locais que por diversos motivos eram totalmente inacessíveis…
Tivemos pois que frequentar vários programas que nos ensinaram a sobreviver em situações extremas, tivemos que nos dar com certas pessoas que nos fariam poder frequentar essas grutas proibidas, movendo conhecimentos, dando anónimas contribuições a funcionários estatais que tornaram legal o que para outros seria ilegal…
Cansados da busca, cansados da desilusão, escolhemos com muito cuidado apenas uma caverna, o nosso derradeiro desafio, que ao mesmo tempo nos condenou e nos salvou, quer física quer espiritualmente…
O maior dos desafios, quer pelas barreiras humanas para lá chegar, quer pelas suas próprias barreiras, era uma caverna que fazia parte de um complexo mineiro que trabalhava não com particulares, mas sim com governos devido à delicadeza do material extraído…A gestão da mina era do mais profissional que poderia haver, imune por isso a subornos…
A dificultar ainda mais as coisas, as condições da caverna eram as mais hostis que havia no planeta à vida humana.
Era a Caverna dos Cristais Gigantes, um local onde o mais pequeno dos cristais tinha o tamanho de um carro familiar, cristais iguais aos que encantavam tanta gente, mas gigantes, cujo tamanho médio era o equivalente a prédios de vários andares, e tão imponentes cujo fim se perdia algures no tecto escuro da gruta, imagens que encantavam com a sua visão ainda mais gente, especialmente desde que as suas fotos começaram a surgir maciçamente nos media globais, depois de uma expedição cientifica ter penetrado pela primeira vez, por breves minutos no seu interior. Brevemente porque a elevada temperatura e humidade asfixiante tornava mortal uma estadia mais prolongada do que minutos.
O aspecto da permanência no seu interior era contornável, pois com um fato especialmente concebido para tal, os minutos poderiam ser horas…
Restava pois o aspecto da acessibilidade…
Durante meses pensámos em soluções, mas o facto da segurança ser de alto nível inviabilizava que lá acedêssemos através de luvas…
Por um mero acaso este obstáculo acabou por ser o mais fácil de contornar ao sabermos que se preparava uma ambiciosa expedição cientifica, que tinha como objectivo explorar toda a caverna e fazer um mapa dela, o que implicava o uso de vastos meios de todos os géneros e de trabalhadores braçais que falassem na perfeição várias línguas devido ao facto da expedição ser composta por cientistas de todo o planeta, logo, o domínio das suas línguas era imprescindível…
Claro que os candidatos foram mais do que muitos, dado essa gruta se ter transformado num objecto de adoração global e imensa gente a querer ver, nem que fosse por breves minutos…
Mas dispúnhamos de várias vantagens sobre a concorrência…: além de termos experiencia na exploração de grutas, também dispúnhamos de alguns conhecimentos…A segurança das minas poderia ser incorruptível, mas quem fazia a selecção dos candidatos não o era…
E mantendo segredo sobre os nossos fatos (que no exterior eram iguais aos outros usados pela expedição) aproveitaríamos a pausa das actividades para nos esgueirarmos para o seu interior e explorarmos a caverna como bem entendêssemos, no tempo que entendêssemos, da maneira que entendêssemos…
E de facto tudo ocorreu como prevíamos até certo ponto, depois tudo mudou de uma forma que estávamos longe de imaginar e que alterou as nossas vidas para sempre…:
Fomos contratados e integrados na expedição que deveria durar meras duas semanas, acabando a tempo de pudermos voltar às nossas vidas, aos nossos empregos que financiavam a nossa busca.
Mas logo nas primeiras horas da expedição no interior da caverna, e antes de termos tempo de a vermos como desejávamos, numa altura em que estavam apenas nós os dois uma enorme explosão abanou a caverna, fechando a entrada desta, deixando-nos sepultados no seu interior.
Desde o começo que não tivemos quase nenhumas dúvidas que nos viessem buscar, porque os nossos nomes não constavam na lista de membros da expedição, porque ao jogarmos pelo seguro fizemos com que apenas uma pessoa soubesse quem éramos, e fizemos com que essa pessoa não tivesse nenhum registo de tal. Essa pessoa ficara no exterior, e sabíamos da sua reputação mais do que duvidosa. Se revelasse que dois elementos que não existiam estavam presos na gruta teria que responder por tal, e sendo alguém nada escrupuloso, sabíamos bem o que nos esperava…
Por mero acto reflexo de sobrevivência ligamos o fato que tínhamos encomendado, mas sabíamos que ao fim de um dia ele deixaria de funcionar e nos morreríamos…
Sentamo-nos em silencio na mais absoluta escuridão, olhando na escuridão na direcção do outro, esperando o inevitável, não esboçando nenhum gesto de resistência, frustração ou de tristeza, pois sabíamos que tal era inútil, pois também sabíamos que os estragos na entrada da caverna eram de tal ordem que jamais se iriam remover imensas toneladas de pedra só para ter acesso a cristais cuja única utilidade era serem vistos e nada mais…
Sem noção do tempo, só notamos que este passava pelo apetite que íamos tendo, e pelo lento definhar do nosso suporte de vida.
Mas quando o isolamento do fato começou a definhar, ao invés de uma onda de calor asfixiante sentimos uma doce frescura.
Por mero instinto de sobrevivência seguimos a onda de ar fresco, sem racionalizar nada, seguindo tal por instinto, e à medida que íamos avançando reparámos numa luz ténue que ia aumentando à medida que avançando, uma luz que ia iluminando os cristais gigantes mais próximos, conferindo a estes uma extraordinária beleza. Quando por fim chegámos ao local de onde vinha a luz constatamos que a explosão tinha feito cair uma parede de pedra que deixava ver uma galeria tão grande como a caverna dos cristais, sem ter estes no seu interior, mas tendo algo com uma equivalência espantosa: essa caverna estava quase toda coberta por um musgo florescente, naturalmente florescente, que cobria quase tudo menos um braço de rio subterrâneo onde nadavam peixes e lagostins sem olhos, habitantes da escuridão.
Infelizmente as entradas desse rio eram demasiado estreitas para constituir uma eventualmente via de escape, pelo que de facto estávamos condenados às profundesas, mas, condenados vivos, pois, como nos apercebemos em breve, além do ar fresco ter transformado a Caverna dos Cristais em algo no qual poderíamos viver, o rio dispunha de alimentos que nos impediriam de morrer á fome…
Em termos racionais não sabíamos o que fazer, em termos instintivos começámos a adaptar aquele mundo a nós, não à espera que nos viessem resgatar, mas desejando apenas e tão somente viver…
O mundo que tínhamos descurado não viria á nossa procura, e muito menos as nossas famílias, os nossos amigos, que por não nos verem não dariam pela nossa falta, logo não poderiam alertar as autoridades para a ausência de quem não sabiam se estava ou não ausente…
Mas foi em termos racionais que trouxemos algum do musgo e que o colocamos em zonas estratégicas ao pé dos cristais, sendo que a partir dai, e tirando as funções fisiológicas passámos o nosso tempo, maravilhados, a contemplar o espetaculo divino de ver os cristais iluminados, sendo que cada olhar era novo, devido aos diferentes lados dos cristais, onde uma diferente incidência de luz faria com que estes parecessem ter mais cores e até mais formas…
E com o tempo a passar, com tantas visões da mesma realidade, do mesmo cenário, descobrimos por fim aquilo que tanto procurámos durante tantos anos, descobrimos o sentido, descobrimos as Estrelas na Terra, bem no centro da Terra…
Cada dia passou pois a ter uma dimensão espiritual completamente diferente, complementada pelo amor que não deixávamos de fazer, porque precisávamos de tal, mas também porque achamos que aquele local era o mais belo onde nos poderíamos amar, e todas as maneiras possíveis e imaginárias…
Os cristais gigantes, iluminados pelo musgo dispunham pois de uma beleza única, a quatro dimensões, ao passo que as outras tinham apenas uma, e estavam demasiado distantes…
E à volta deles e do musgo todo um ecossistema completamente diferente do que conhecíamos começou a nascer, sustentados no musgo e na iluminação, múltiplos insectos de todos os géneros e até mesmo pequenos mamíferos, igualmente florescentes passaram a inundar a escuridão, e por isso no escuro víamos pequenas estrelas em movimento, pontos de luz, estrelas bem vivas, um túmulo que se transformou num berço, num lugar de vida, um lugar onde proliferava a vida e nós descobrimos amar aquele lugar mais do que tínhamos amado o que quer que fosse na vida…
Tínhamos por fim encontrado a casa que tanto desejávamos, tínhamos por fim encontrado onde realmente gostávamos e gostaríamos de estar para sempre…
E perdemos de facto o desejo de voltar ao mundo, porque tínhamos encontrado o nosso mundo…
Até que um dia o mundo veio ter connosco e nós ficamos sem saber o que fazer…
À distância começámos a ouvir um som que reconhecemos, o som metálico de brocas, primeiro de facto distante, mas que se aproximava, cada dia que passava, cada vez mais…
Não sabíamos se vinham por nós ou se vinham por outro motivo, sabíamos simplesmente que vinham ai, e que aquele mundo ia deixar de ser nosso, que nos iriam obrigar a voltar ao outro…
Discutimos então de forma doce o que iríamos fazer…E descobrimos que aquele mundo era mais teu do que meu, pois eu coloquei a hipótese de voltar, mas tu recusaste tal de forma bem convicta desde que colocámos essa hipótese…
Eu imaginava-me a regressar, mas esse regresso era o pior dos teus pesadelos…
Perante a tua decisão, ainda pensei em fazer-te companhia, afinal estávamos juntos à tanto tempo que não me imaginava sem ti, mas o meu lado grupal falou mais alto, pois eu precisava de voltar a estar entre humanos, necessitava de tal, também precisava de ti, mas tu eras uma, imensa, mas a humanidade era infinitamente mais…
Mas sabíamos que a nossa felicidade tinha acabado…: se ficasse contigo iria para sempre lamentar não ter partido, se partisses comigo jamais voltarias a ser feliz, indo alimentando um ressentimento, por te ter convencido a partir, que com o tempo nos iria separar…
E assim arranjámos uma solução na qual ficarias sem que te obrigassem a sair dali…: Quando chegassem à Caverna dos Cristais, apenas surgiria eu, dizendo que tinhas morrido, e pedindo para encerrarem aquele espaço em tua memória…
Quando as máquinas chegaram descobrimos que tinham chegado por mero engano, que estavam meramente em busca de minério…
Com o tempo a caverna dos cristais perdera todo o interesse, ao ponto da minha espantosa história de sobrevivência não despertar o mínimo interesse que justificasse sequer um livro a relatar tal…
E assim a caverna foi selada contigo no seu interior…
Já se passaram vários anos, e cada dia que passa sinto a tua falta, e cada dia desde então, apesar de ter encontrado o sentido, que passo horas a ver as estrelas à noite, não em busca delas, mas em busca de ti…
O sentido de facto tenho-o, mas não te tendo a ti, tudo deixou de fazer sentido, e por isso eu busco as estrelas, pois só ao contemplar estas sinto algum sentido, sinto quem amo mais, sinto-te…
Porque de facto as estrelas do céu são belas, mas mais belas ainda são as Estrelas do centro da Terra…
Notas:
-A gruta referida neste conto existe, de facto os cristais são gigantes e as condições no seu interior descritas são mais ou menos as deste conto. A sobrevivência do casal foi uma liberdade criativa que usei como forma a criar o ambiente perfeito onde o casal pudesse encontrar o que desejava
-Há de facto musgo florescente capaz de iluminar parcialmente a divisão de uma pequena casa(descobri tal na minha adolescência numa serra portuguesa, mas pelo que sei jamais incapaz de iluminar uma gruta e muito menos destas dimensões…)
-O fato usado pelo casal é uma mera invenção do autor, uma liberdade criativa de forma a possibilitar uma parte do conto.